A CORROSÃO DO CARÁTER EM 50 TONS DE CINZA.
Marina da Silva
Para
apreender e compreender a ideia por detrás do título deste artigo é necessário
estar nu [sem trocadilho], é preciso despir, literalmente, deletar séculos de repressão
e recalques, freudianamente falando, morais, éticos, culturais, religiosos -
não exatamente nesta ordem - e de muitos outros dogmas e (pré)conceitos
arraigados no mais profundo e abissal abismo da alma.
A corrosão do caráter
e 50 Tons de cinza
são títulos de dois livros interessantes, cada qual ao seu modo e que possuem
uma interface comum: a atual fase capitalista globalizada ou Acumulação
flexível de capitais e seus efeitos e “defeitos” colaterais tanto sobre o modo
de produzir e gerenciar a produção como nas relações sociais do trabalho e
relações humanas como um todo!
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Escrito
pelo economista Richard Sennett e publicado em 1999, A corrosão do caráter traz a baila discussões sobre as
“Conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo”, tema também abordado
com propriedade e exaustivamente por David Harvey em 1989 na obra “A condição pós-moderna”.
Assim,
como a acumulação flexível não é “novidade” na obra de Richard Sennett, o tema
erotismo/pornografia/sexo/masoquismo/sadismo tratado nos 50 Tons de cinza não é a “descoberta do novo mundo da sexualidade”!
Mesmo
antes de Freud [1856-1939] tratar a categoria sexualidade como “pulsão de vida”
muitos outros já usavam e abusavam do assunto: Boccaccio [1313-1375]; Marquês de Sade [1740-1814]; Bocage [1765-1805]; e até Carlos Drummond de Andrade [1902-1987] topou no meio do caminho a pedra da tal
sexualidade! Isto sem necessidade de downloading do Kama Sutra e a vida em Pompéia!
"Ao delicioso toque do clitóris,
já tudo se transforma, num relâmpago.
em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentram.
vai a penetração rompendo nuvens
e devassando sóis tão fulgurantes
que nunca a vista os suportara
mas, varado de luz o coito segue.
e prossegue e se espraia de tal sorte
que além de nós, além da própria vida,
como ativa abstração que se faz carne,
a ideia de gozar está gozando". o amor natural. Drummond
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Mas
então? Qual é o mérito de A corrosão do
caráter e 50 Tons de cinza? O que os liga visceralmente?
Em
primeiro lugar a linguagem: simples, fácil, direta, clara, rápida e despojada,
dispensando ajuda de manuais científico-econômico-filosóficos ou dicionários
para se tornar inteligível, característica da fase atual, bem cara século XXI,
principalmente na trilogia 50 Tons de E. L. James, que além de fácil, é
simplória, repetitiva, chula e pobre, literariamente falando.
Ambas
as obras tem como tema a flexibilidade.
Sennett, como a maioria dos pensadores atuais enfatiza a flexibilidade como conditio
sine qua non da acumulação
capitalista desde o fim da Gold Age, fase de recuperação econômica da Europa e Japão
após a Segunda Guerra mundial, ascensão dos Tigres asiáticos e retorno da onda
neoliberal.
A
ênfase dada à flexibilidade muda não somente a forma Fordista/taylorista de
produzir, distribuir e comercializar mercadorias como altera o caráter do
trabalho (uso intenso de tecnologias de informação, automação com base na
microeletrônica, robotização, bio-engenharia, etc), mas também a vida do
trabalhador, sua personalidade, a construção de sua identidade e relações
pessoais e sociais!
Estas
características flexíveis são passíveis de ser capturadas na trilogia E. L.
James em 50 ou mais tons de cinza! A primeira delas é o senso de oportunidade
ou talvez...oportunismo?! E.L James, na onda fanfiction, isto é, azarar ou
levar vantagem sobre a arte alheia, resolveu numa grande sacada usar a obra
de Stephenie Meyer,
a trilogia Crepúsculo e criar uma versão pornoerótica do triângulo amoroso
entre Edward Culen (vampiro), Jacob (lobisomen) e Bela Swan (adolescente
desajustada e donzela indefesa). A aposta não apenas vingou como ganhou vida
própria no site da autora e contratos de publicação e versão para cinema...milionários!
www.google.com.br/images. A trilogia 50 tons já desbancou Paulo Coelho, Sthefenie Meyer, J.K. Rollings, campeões de venda e bilheteria!
Quem
não arrisca não petisca, diz o dito popular e correr risco é uma das
características da acumulação flexível e tema do capítulo 5 em A Corrosão do caráter!
Mais
do que dantes o mundo capitalista, exacerbadamente individualista, divide as
pessoas em vencedores e fracassados. Rigidez, repetitividade, rotina, longo
prazo, acomodação estão ligados ao passado, a velho, ultrapassado, obsoleto, o mesmo
que fracasso, ou seja, produção em massa Fordista/Taylorista. Já flexibilidade,
inovação, criatividade, alto risco, fluidez, desapego, juventude,
empreendedorismo, imediatismo são características da atualidade – produção
Toyotista e variantes personificada em Christian Grey, 27 anos, vencedor,
empreendedor, criativo, inovador, imediatista, bilionário e CEO da Grey
Enterprises Holdings Inc!
Sr. Grey é o cara...das aquisições e fusões e especulações!
www.cinquentatonsdecinzabr.com. O melhor vídeo de humor no youtube satirizando 50 tons!
Anastásia
Steele representa flexibilidade e aventura. Disposta a correr risco numa
relação sem “flores e corações” aceitando um contrato de alto risco que a
encarcera, amarra, amordaça, fere e a submete aos desejos sado-masoquistas de
Christian. Virgem que mal sabe o que é sexo baunilha”, Ana é seduzida e quer experimentar o novo: “sexo
sacana, bruto, duro e depravado” no “Quarto vermelho da dor”!
Se
no Fordismo/taylorismo o tempo rotinizado,
a repetitividade, o longo prazo permitiam forjar laços fortes, pessoais,
sociais e com a empresa, construir uma história de vida, o imediatismo, o curto
prazo, a fluidez e flexibilidade atual forjam laços sociais e pessoais frágeis,
superficiais e degradados, afirma Sennett.
O
dominador Sr. Grey é intocável; suas relações com o sexo oposto se dá de forma
“pervertida”, através de contratos de confidenciabilidade e de “trabalho”, o
que lhe garante que nada “grudará” nele!
A
forma de abordar uma parceira é inovadora: um contrato de serviços de curto
prazo (3 meses) onde ele, o Amo, tem a obrigação e dever de cuidar (saúde física, bens materiais) e
satisfazer sexualmente a mulher levando-a a conhecer os limites de prazer do
próprio corpo numa relação de trabalho sadomasoquista de submissão total, banhada
pelo luxo e riqueza restritos aos "vencedores"!
www.google.com.br/images. "Eu posso!"
Curiosidade,
flexibilidade, risco, busca do novo é traduzido na personagem de Ana,
universitária, classe média C, colaboradora part-time que desaba liberalmente
de quatro e de amores numa entrevista com o inacessível Sr. Grey. Graduada em Letras,
a Srta. Steele cai como luva no papel de escrava sexual, ops, submissa, o que dá
no mesmo!
“Embora de verdade, quero saber? Quero
explorar esse mundo do qual não sei nada? (...) Estou segura de que quero saber
até onde chega a depravação de Christian?)Livro 1. p.143
Mosaico a partir de www.google.com.br/images. LUXO INDECENTE, IMORAL, CARÍSSIMO, ENFIM, SONHO PARA "VENCEDORES"! Aos mortais sobram as falsetas, os genéricos, os produtos pirateados MADE IN CHINA!
Tanto
D. Harvey como R. Sennett percebem que na Acumulação flexível há a formação de
um grupo seleto de trabalhadores, altamente qualificados para quem são
destinados produtos e serviços de altíssima qualidade e luxo! E. L. James não
só acerta com o “sexo depravado” como dá um maravilhoso golpe de mestre: faz da
sua trilogia um catálogo de vendas! A cada “...ida”, e, a média são três
relações sexuais por capítulo, E.L James faz questão de divulgar marcas, lojas
requintadas, etiquetas famosas atreladas ao seu preço! Anastásia não consegue
esconder o deslumbramento com a riqueza de Christian embora tenha pruridos
moralistas; teme ser taxada de interesseira ou mera prostituta de luxo! “Meu
subconsciente franje os lábios e articula a palavra vadia”.
Mosaico a partir de images www.google.com.br. Precinhos OBSCENOS!
Não
existe mais “longo prazo” e as novas tecnologias afetam drasticamente a
percepção tempo/espaço. No capitalismo flexível tudo é para ontem, as respostas
devem ser imediatas, inovadoras, criativas e gerar lucros e isso só é
pertinente aos jovens! É a hora e a vez da geração Ypisilone, que enxerga os
problemas de cima, a frente do seu tempo e dão respostas imediatas para
facilitar e satisfazer a vida nas metrópoles e de quem tem dinheiro! Sr. Grey
tem perfil e todas as qualidades da acumulação flexível: juventude,(bilionário
antes dos 30 anos); diversificação de negócios [de tecnologia de informação,
passando pela construção naval, cadeia de salão de beleza até o arriscado jogo
de especulação com aquisições, fusões, destruição ou reengenharia de empresas e
mesmo especulação alimentar]. Sr. Grey é o player master of universe!
www.google.com.br/images. Febre mundial entre as mulheres, a trilogia 50 Tons invade o cinema. Acima a autora e famosas, entre elas, algumas cotadas para cair na pele de Ana Steele!
A
mudança do caráter da produção Fordista/taylorista baseada na produção de
massa, rotina, repetição, mesmice para a acumulação flexível Toyotista/variantes
ágil, flexível, rapidez, diversidade de produtos pode ser detectada em 50 Tons
de cinza na distinção entre sexo baunilha (rotineiro, tradicional) e sexo
depravado, sacana (ritmo acelerado, explosivo, cheio de possibilidades kama
sutra/Marquês de Sade, insaciável) temperado com muita dor! Novas posições e
experimentações no sexo, nova abordagem com ênfase e preocupação com o prazer
feminino, afinal, mais de 50% da população economicamente ativa no mundo hoje é
formada por mulheres!
www.google.com.br/images. kkkk 50 Tons virou moda! As mulheres adoram, os homens odeiam, ignoram, temem ou fazem piadas machistas!
Livro
de mamães, vinte filmes pornôs só que escritos, sessão Band Privê, livro de mulherzinha, livro de
putaria e obscenidades! Estas e muitas outras definições pejorativas acompanham
a trilogia 50 Tons de cinza, principalmente da boca de quem não leu e não
gostou!
Entretanto,
todas as características da acumulação flexível tematizada por Harvey e Sennett
em A condição pós-moderna e A corrosão do caráter estão presentes nos 50 tons
de cinza: inovação, linguagem high tech, namoro virtual, trabalho de risco.
Grey comanda virtualmente seu império em
casa e através do seu Blackberry e MacBook Pro da Aple.
www.google.com.br/images. "50 Tons de cinza? Eu não leio porque tenho medo de me apaixonar pelo cara!" Afirmação de um homem MMM-movimento machão mineiro!kkkkkkkk
Sr. Grey quer “ficar”: não namora, não quer
romance (longo prazo), gosta de dominar, submeter, controlar tudo e todos ao
seu redor; quer mulheres submissas, mas flexíveis, que aceitem relações sado-masoquistas
via contratos. Uma proposta “indecente”; um contrato consensual para dor!
Missão,
metas, planejamento e gestão estratégica, palavras de ordem da reengenharia e
reestruturação produtiva estão no contrato de submissão elaborado para atingir
seus objetivos sexuais! Sr. Grey quer mulheres abertas a novas informações e
sua missão e projeto, além da satisfação sexual de ambos, é levar a mulher a
descobrir os limites da própria sexualidade através da submissão total ao seu
quarto de jogos, ou, nas palavras de Ana Steele, o Quarto vermelho da dor!
Dominar, controlar, submeter, prender, espancar, bater, surrar! Sr. Grey mantem a mulher “no
seu quadrado”, tratando suas mulheres e principalmente Ana, possessivamente,
como brinquedos sexuais e confundindo cuidar e proteger com dominação, controle
e vigilância ciumenta, comprando as mulheres com mercadorias caras e refinadas!
www.google.com.br/images Relação Sr. Grey! Vai encarar?
“Você
é minha e eu cuido do que é meu”; “eu posso”; “porque eu posso”, “ninguém toca
no que é meu”!
Gravatas,
máscaras, algemas, varas, chicotes, braçadeiras, açoites, etc, petrificam a
relação homem/mulher e reforçam o papel social que sempre foi destinado as
mulheres: manter a mulher presa ao homem e para o homem!
www.google.com.br/images VELOCIDADE...O MÁXIMO!
As
novas tecnologias alteraram definitivamente a percepção de tempo/espaço e
velocidade e rapidez estão representadas em 50 Tons de cinza nos carros, jatos,
helicópteros, nos celulares e computadores de última geração, nas ações de
Christian Grey nos negócios, no cerco, vigilância e onipresença sufocante na
vida de Ana. E ainda, na explosão de sexo contínuo e no “gancho” a cada final
de capítulo que prende e leva o leitor a mesma ansiedade e urgência do casal na
leitura. Tem-se a impressão de que o livro tem um único capítulo com algumas
pausas para gozar, ops, respirar! Bingo
e pontos para E.L. James!
Se
entre a substituição dos modos de produção [Fordismo/Taylorismo para
Toyotismo/variantes] há uma fase de transição e mesmo retorno e recrudescimento
de relações precárias de trabalho (terceirização, escravidão, por exemplo) a
mesma fase pode ser percebida no rompimento da relação do casal no livro I; na
tentativa de explicação, adaptação/transformação/”cura” do comportamento sexual
pervertido do Sr. Grey no livro II e a mescla ou adoção do sexo bruto, sacana,
pervertido em variantes “aceitáveis” no livro III.
www.google.com.br/images. Sr. Darcy, personagem de Orgulho e Preconceito de Jane Austen.
Perdidamente
apaixonado, Christian está disposto a ficar só no sexo baunilha; o mesmo
acontece a Ana, que quer arriscar um jogo ou outro no Quarto vermelho da dor, para ficar com seu príncipe pervertido!
A
ousadia e aposta alta de E.L. James está na curiosidade e senso de aventura de
Ana: “Isso eu posso fazer”; “Eu posso conviver com isso” sem medo da condenação
divina ao inferno de Dante!
A cartada final, o xeque mate vem com pedido de
casamento, anel de noivado Cartier, flores e corações, véu, grinalda, lua de
mel na Europa a bordo do Lady Fair e “Eles viveram felizes para sempre” numa
hiper mega plus mansão ecologicamente sustentável com cachorro e filhos
corroborando o atual momento da acumulação flexível que além de não suplantar
totalmente o Fordismo mescla Toyotismo/Fordismo e muitas corrupções, ops,
variações no modo de produzir, distribuir e comercializar suas mercadorias!
Se
no mundo real é possível esse caráter corrompido da produção por que uma
relação tradicional, monogâmica não pode ser apimentada com uma fuga da rotina
e experimentações sado-masoquistas?! É a aposta de E.L. James.
www.google.com.br/images
50
Tons de cinza quer ser um conto de fada com UP-grade, a diferença é que, ao
contrário dos príncipes que arrebatam princesas em seu cavalo branco e as beijam
castamente, totalmente assexuados, Christian Grey, não é filho de rei, não tem
diplomas, construiu sua própria fortuna antes dos 30, é um belíssimo serial entrepreneur (aposta em
tudo),
vem montado num Audi R8, exibindo e esbanjando muita riqueza, “sem flores e
corações” e quer princesas submissas para F*@.com.sadismo.masoquismo!
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