FICÇÃO BRASILIANISTA
“Sem memória, não há futuro”.
Sérgio Antunes de Freitas
Meu amigo Delmiro sempre foi um aficionado por ficção científica.
Em uma tarde sem compromissos, nós estávamos conversando sobre o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, quando ele se lembrou de um conto.
Era por volta de 1970 e nós não tínhamos intimidades com os computadores; não sabíamos que esses equipamentos têm limite de capacidade. Para nós, era uma coisa mágica, uma espécie de inteligência artificial ilimitada.
O personagem principal do conto era um cientista inteligentíssimo, morador de uma pequena cidade e pesquisador de assuntos cibernéticos.
Esse estudioso começou a fazer cópias das mentes das pessoas de sua cidade e a colocá-las no computador. Dessa forma, observava os “arquivos” agirem e até pensarem como seus originais.
Aos poucos, foi observando também um relacionamento voluntário entre as pessoas virtuais, repetindo as atitudes de seus respectivos convívios sociais reais.
Resolveu, então, fazer a cópia de sua própria mente e incluí-la em seu experimento.
Após algum tempo, quando ligou o equipamento, notou seu homólogo virtual querendo fazer contato com ele.
Ele abriu essa possibilidade e o arquivo perguntou: - Quem é você? Quem sou eu? Você manipula as pessoas deste meu lugar? Você pode simplesmente me eliminar deste meu universo?
O cientista respondeu tudo, de acordo com a verdade, e o arquivo silenciou.
Pouco depois, notou sua cópia contando aos outros arquivos uma provável conversa tida com Deus. E, por isso, se tornou chacota naquele mundo, onde todos o consideraram um maluco.
E ficou louco mesmo, vindo a se auto apagar. Foi um suicídio virtual!
O cientista, assustado, encerrou a experiência.
Décadas depois, o Delmiro me contou uma fábula.
Havia um conjunto de enormes formigueiros em uma área deserta, com formigas pretas, vermelhas, cinzas, diferentes, vivendo lado a lado. Uma vez ou outra, por conta de um pedaço de folha ou um esbarrão, elas se digladiavam, mas eram fatos isolados. No geral, era uma convivência pacífica.
Porém, a lâmina de um trator cortou fundo os formigueiros e alterou a harmonia de todas as comunidades.
Os insetos perderam seus rumos, com a destruição de túneis, galerias, câmaras. Somente os das regiões não atingidas continuaram a viver normalmente.
E os atingidos, quando encontravam as outras espécies, as consideravam responsáveis pela agressão sofrida. A violência passou a se tornar rotina entre eles, enquanto tentavam consertar as estruturas de suas habitações.
Os domínios e os conflitos sempre receberam uma preferencial atenção do Delmiro.
Há alguns dias, ouvi dele uma nova conversa.
Segundo sua impressão, existe mesmo um Grande Irmão, nos moldes descritos por George Orwell, no livro “1984”, também com influência internacional e atitudes semelhantes.
Não é uma pessoa, mas um grupo anônimo, com um idealismo conservador, desumano, para defender seus gigantescos e inacreditáveis interesses econômicos, passando pelo sistema bancário e tráfico de drogas, além de outras atividades delituosas. Grandes impérios não passam de seus prepostos.
E há um efeito cascata desses interesses, descendo até pequenos investidores, acionistas minoritários e corporações, formando um cinturão de segurança para o núcleo maior.
Como agravante, eles têm o poder das mais temíveis armas do universo, com estratégias de guerra diversificadas e apropriadas a cada caso: guerras com armas convencionais, guerras cirúrgicas, guerras biológicas, guerras cibernéticas, guerras nucleares, guerras econômicas, guerras de informação. Na verdade, todas as guerras sempre são mais invasões e, raramente, lutas em igualdade de condições.
No meio dessa fartura de hostilidades, está o Brasil, com tantas riquezas, a ponto de ser considerado uma moça de belezas encantadoras, causadora das ambições dos aventureiros. Todos a querem cortejar, submeter, possuir.
Ao longo da história pós-descobrimento, houve inúmeras tentativas de apropriação do território nacional, além da colonização portuguesa.
Mas também houve muita resistência e tentativas de independência pelos nativos com sentimento pátrio, como a Inconfidência Mineira. Contudo, o movimento foi sufocado com prisões, degredos e enforcamento, embora tenha deixado marcas, influenciando fortemente a independência política em 1822.
Após muitas décadas de vida pública conturbada, em 2006, foi anunciada a descoberta do Pré-sal, uma reserva de petróleo em águas profundas, cuja exploração seria impossível, segundo muitos comentários suspeitos. Desdenhavam para comprar!
Em 2008, foi aprovada a Lei que criou o Fundo Soberano do Brasil, para aproveitar os royalties do petróleo e outros recursos, a fim de se promover uma revolução na infraestrutura física e educacional do País, almejando o fim da pobreza e das injustiças sociais. Fundos semelhantes já existiam em Dubai, Noruega, Catar, Singapura, China, sendo grandes responsáveis pelo desenvolvimento desses países. Definitivamente, esse era o rumo para uma emancipação cabal sob todos os aspectos, com o apoio significativo de dezenas de milhões de eleitores. Somente os políticos de oposição, irresponsáveis sedentos pelo poder, não concordavam.
Era demais para o Grande Irmão ver a Republiqueta das Bananas escorrendo pelos seus dedos. Petróleo, Base de Alcântara, Minerais da Amazônia, mercado de supérfluos, tudo corria o risco de não terminar em suas mãos.
Alguma coisa precisava ser feita e rapidamente!
A opção foi uma oportuna invasão psicossocial através das áreas da comunicação de massa.
As agências internacionais de notícias sempre foram utilizadas para direcionar as intenções dos seus detentores, obrigando a imprensa nacional, regional e municipal a replicarem as informações de seus interesses, até de forma ostensivamente ameaçadora.
Vídeos e filmes também sempre foram meios de aculturação das populações dominadas e suas disseminações foram aceleradas.
Em razão disso, já havia um exército de cabeças brasileiras voltadas para o atendimento dos propósitos da dominância externa.
Para colaborar fortemente na empreitada, passaram a atuar nas redes sociais, com a tecnologia dos aparelhos celulares, fartamente disseminados, mediante os destaques de notícias tendenciosas e as fake News, planejadas caprichosamente por comunicadores inescrupulosos.
Os convencidos da veracidade das mentiras replicaram e inventaram mais jacobices, pelo conhecido efeito-manada.
Os alienados, geralmente consumistas e hedonistas, foram aquietados ainda mais com textos de autoajuda.
Os alvos foram os sentimentos, os princípios morais, o arcabouço educacional dos indivíduos.
A falsa fé, a falsa moral, a falsa educação, a falsa elegância, tomaram lugar das verdadeiras.
O patriotismo consciente deu lugar ao ufanismo escandaloso.
Do berço, abominavam as boas raízes e justificavam os preconceitos com orgulho. Também eram exaltados os sentimentos de supremacia racial, econômica, ideológica.
Conseguiram obscurecer as mais básicas valorizações da vida, enaltecendo comportamentos como a mansidão e servidão dos trabalhadores, revivendo traços escravocratas de ambos os lados.
Nas redes sociais, apareceram influenciadores. Eram apedeutas, questionando a ciência, os livros, as pesquisas, a história. Controvertiam a importância das vacinas, principalmente no tempo da pandemia, assim como o formato do Planeta e as afirmações de filósofos internacionalmente respeitados há séculos.
Raros eram os diálogos construtivos. O caminho da dialética estava bloqueado!
As doutrinas se tornaram verdades absolutas e inquestionáveis.
As crenças e os dogmas substituíram a razão, o discernimento e o raciocínio próprio.
As discussões sempre criavam um crescente de ofensas diretas e indiretas, de violências verbais e físicas, sugerindo o armamentismo e penas mais rigorosas para todos os delitos, mesmo para comportamentos não delituosos, controversos na ótica dos desconhecedores das leis. A ignorância sobre os Direitos Humanos ficou evidenciada.
Grupos sociais de fortes laços afetivos foram abandonados. A união das pessoas acontecia somente com base em extremismos e fanatismos. Amizades foram desfeitas. Grandes amores, desprezados e esquecidos!
De um modo transverso, estava confirmada uma frase de Orwell: “Eles têm medo do amor, porque o amor cria um mundo que eles não podem controlar".
Das mais variadas formas, o ódio imperava!
A lâmina do trator havia cortado fundo na sociedade brasileira.
Tudo isso refletiu nas esferas dos poderes constituídos, com a subversão de processos judiciais e eleições ou nomeações dos cooptados pelo Grande Irmão.
Em 2019, foi revogada a Lei do Brasil Soberano.
E aquele cientista, copiador de mentes para dentro dos computadores nos anos setenta, já velhinho, passou a descrever esse enredo para seus amigos e conhecidos, como se fosse a exata interpretação da história recente.
A polarização não se dissipava rapidamente. Muitos concordavam, mas muitos outros diziam ser apenas uma ficção científica, uma opinião surrealista, uma teoria da conspiração.
E o cientista retrucava: - Pode ser, mas os efeitos dessa distopia ou coisa parecida foi muito real. Todos foram testemunhas e vítimas das agressões. E os destroços estão aí.
Sérgio Antunes de Freitas
Março de 2024
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