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sexta-feira, 7 de junho de 2019

BRAZIL: VIDA DE CACHORRO

MEL E O CACHORRO DO MARIDO
Marina da Silva

Um causo mineirês  no busão, tirou minha atenção do meu amor (e-book Kindle) e veja bem, eu estava em Paris, século XVIII, vivendo Voltaire  versus a pequenez feudal de uma nobreza inculta e bárbara.
Estou lá no chão, indignada como o jovem filósofo atacado à pauladas numa cilada, por uma de suas peças demolidoras da hipocrisia do Clero e nobreza ociosa, improdutiva e parasita quando uma voz revoltadíssima começou o relato da desgraça que lhe ocorreu no fim de semana; e tudo porque o cachorro do marido, cego como uma toupeira passou a roda do carro sobre Mel, a cadelinha xodó da mamãe, ops, narradora da desgraça.
A elegância, sensibilidade e fragilidade de Mel, que sequer soltou um gemidinho na hora, livrou o cachorro, isto é, o marido de ser esgoelado  ali na mesma hora.
O casal entrou em casa e logo a seguir os filhos Ygor e Yan chegaram do colégio. Todos almoçaram felizes e cada um foi para seu lado, ou seja, os meninos para os celulares e o "cachorro" para a cama tirar um cochilo enquanto ela, a mãe de Mel, dava uma ordem na cozinha, único lugar da casa organizado porque ela não permitia bagunça no recinto. Cozinheira de mão  cheia, a mulher se gabava da ceia que preparara para o governador, não citando o nome, mas dando uma fungadinha no dorso da mão como aspirando cocaína.
Voltaire, além de ter sido humilhado e levado pauladas numa emboscada ignóbil, não conseguiu justiça em Rhoen nem apoio de nobres amigos nobres e acabou passando uma temporada na prisão, proibido de colocar os pés em Paris.
Eu, visão totalmente encoberta pela multitude de passageiros, bolsas, sacolas, capangas, mochilas, só tinha acesso a voz engraçada, imponente e ao mesmo tempo imperial da mulher. Fiquei capturada, presa no causo de Mel, uma cadelinha de raça e nobreza que esperou todas as atividades na casa cessarem, para ir, cabisbaixa, sofrida, capengando em três perninhas e arrastando a outra toda amassada, fazer o B.O contra o assassino, o cachorro do marido.
"Eu estava tirando o esmalte das unhas da mão e vi a pobrezinha toda estropiada, a patinha assim (imaginei o gesto da moça com o próprio braço) toda destruída coitadinha (voz de choro)".
A mulher levantou do sofá esparramando tudo para o alto e gritando para o cachorro do marido e chorando descontrolada.
"Se ela morrer eu te largo! Você fez de propósito, você odeia meus cachorros (irmãos de Mel) e nem coloca água para os coitadinhos".
Imaginei o cachorro, ops, marido, a sono solto, barriga para cima, babando e roncando, patas esparramadas pelo colchão e travesseiro e...
O grito lancinante de bicho ferido da mulher o lança, só Deus sabe como, escada abaixo, pés descalços, só com bermuda, rompendo na velocidade da luz a barreira do som, alma fora do corpo, coração na boca, para socorrer a esposa.
Chorando alto, soluçando, desfazendo-se em lágrimas, lá está ela,  a "mamãezínea" com sua "cachorrínea" no colo, patinha estraçalhada nas mãos.
O coração do cachorro do marido, quase saindo goela afora e tudo por causa de uma cadela?
O "cachorro", passado o susto, respirou, recobrou o senso, recompôs-se e passou a maior descompostura na "mamãezínea".
"O quê? Esse berreiro todo por isto? E apontou com desdém para Mel, que neste momento gemeu e fez os olhinhos mais tristes  e humanos do mundo.
"Uai? Você passou  a roda do carro sobre a Mel (não era só uma patinha?) e ela vai morrer!"
"Vai nada! Me dá ela cá que vou consertar a pata igual fazia na roça com meu pai. É só amarrar umas tiras velhas. Tem palito de picolé ou churrasco em casa?"
Jesus! Quanta frieza! Eu já estava quase em lágrimas.
"É ruim você encostar suas patas na Mel seu cachorro, assassino! Pega as chaves do carro e vamos para o hospital!"
"Não vou! É um cachorro, não é gente!"
Meu Deus! Eu quis pular no pescoço do cachorro do marido. Um ser desumano, cruel, frio, disgramado.
"Ah! Você vai sim!"
"Não vou!"
Nesta hora, em total suspense pensei: "ela esgoelou este cachorro descarado!"
Mas não. A mamãezínea, com Mel, sua filhinha cachorrínea aconchegada ao peito, apanhou as chaves, abriu a porta da casa,  entrou no carro batendo a porta com estrondo, numa força descomunal e intencionalmente para ferir o cachorro que morria de amores pela merda de carro. 
O cachorro do marido, olhos esbugalhados, seguiu a esposa desvairada gritando:
"Tire esta bosta do meu carro! Se ela cagar aí eu te mato! Você não pode dirigir assim sua louca!"
E aí veio a ameaça apocalíptica:
"Se a Mel morrer, eu vou quebrar este carro todo, vou esfaquear este estofado de couro, vou quebrar os vidros, vou tacar fogo nele!"
A garagem abriu e ela saiu tresloucada, descabelada, chorando e consolando Mel, dizendo que tudo ia ficar bem, que o doutor ia curá-la e pedia força e coragem à cachorrínea, que dona da situação, aconchegou-se mais no colo, tristonha e soltando um gemido inaudível, quase moribunda.
A mamãezinea se desesperou, sentiu uma faca retorcendo seu coração, perdeu-se no caminho, não sabia onde estava, não sabia onde tinha um hospital para sua filhinha. Então parou o carro e desabou num choro desconsolado. Minutos depois foi despertada daquele estupor pela sirene de uma viatura policial e foi só então que lembrou: no desespero para salvar a filha,  saíra sem nada, apenas com Mel no colo.
O policial chegou até o carro e perguntou:
"O que foi senhora? Em que posso lhe ajudar?"
Ela, em prantos, apenas mostrou a patinha da filha para o policial e contou, engasgando soluços, o que aconteceu, a frieza do cachorro do marido que não quis trazê-la ao hospital e que ela estava perdida e que Mel ia morrer. Um relato banhado em lágrimas de cortar o coração.
O policial, ao contrário do cachorro,  entendeu sua dor e desespero, acalmou as duas, e se propôs  guiá-las até uma Pet mais próxima, ou seja, dois minutos dali.
Ambas foram escoltadas, graças a Deus, e o policial era lindo. Ela agradeceu ainda chorando muito, ao rapaz, entrou no estacionamento, desceu agitada, correndo, mas aliviada. Não conseguiu dizer uma palavra, apenas mostrou Melzinha para a veterinária que a tomou nos braços carinhosamente, passou as mãos nos cabelos da mamãezínea e disse:
"Não se preocupe mãe, vamos cuidar muito bem dela; tudo vai ficar bem!"
Mel passou por uma bateria de exames incluindo exames de sangue, vacinação e chorou só um pouquinho na hora da injeção.
Mamãezínia e cachorrínea ganharam tratamento VIC- Very Important Canídeo. Mel ganhou lacinhos nos cabelos, roupinha de convalescente, patinha enfaixada e um ossinho; Mamis ganhou água, suco, biscoitos, carinho, as receitas dos medicamentos necessários, cartão de retorno, cartão de vacinas atualizado e a conta: $500,00.
Só com a conta nas mãos  é que mamãezínia  se lembrou que saíra descabelada, em desabalada carreira sem bolsa, dinheiro, celular, enfim, nadica de nada.
A veterinária entendeu tudo e marcou o pagamento para o dia seguinte.
"Deus é Pai!" E todos os cães merecem o céu - completei em pensamento.
Foi nesta hora que me veio à mente uma cena de um dos filmes de Pedro Almodôvar, cineasta e diretor espanhol:
"Eu sempre dependi da bondade de estranhos (ou alheia)!"
Final feliz! Menos para o cachorro do marido que ficou PT da vida com o valor da "palhaçada" da mulher com um bicho vagabundo e por expressar tal sentimento abominável, foi expulso do quarto do casal até Mel ficar totalmente curadíssima.
Neste momento imaginei Melzinha, olhar diabólico para o cachorro e planejando ficar na cama com a mamãezínea para o resto de sua vida canina!


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Dedico esta crônica a criadora dos neologismo mamãezínea e cachorríneo Deise de Jesus Lourenço e seu amado filho Pituco.


Um comentário:

  1. Deise de Jesus Lourenço8 de junho de 2019 às 15:45

    Não consigo parar de rir!!!!! E não tenho um pingo d
    e pena do cachorrão do marido... Voce é demais!!!! Adoro seu jeito de escrever.... me senti lá, vivendo tudo junto.... kkkkkk .... obrigada pela homenagem.... adoro os cachorríneos. Agora vou ler o texto para o meu Pituco... te amo!

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