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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

BRAZIL: VIDA UBERIZADA

 

VIDA DE INSETO 
www.google.com.br/images.  De domingo a domingo, 7 dias  pedalando 12 horas diárias e renda R$936,00. 1

Marina da Silva 

Vejo-o ao longe, lá no pé da rua, deitado na calçada que aqui se chama passeio. 
Ao seu lado, seus instrumentos de sobrevivência: uma bicicleta G-1, classificação que criei para o primeiro emprego de jovens trabalhadores MEI- Micro-Empreendedor Individual, atual sub-proletariado também conhecido como precariado, uberizados; jaz também ao seu lado uma caixa de isopor plastificada, vermelha, Ifood. 
É quase hora do almoço e provavelmente “seus corres” não lhe garantiram ainda uma marmita. À medida que avanço em sua direção melhora meu foco, fecho nele minha melhor visada. 
No meu celular um galo canta despertando o rapaz. 
Ele se põe sentado. Magro, pálido, pequeno, quase só ossos e pele. Veste uma camiseta cinza, uma calça marrom fechado de brim; nos pés uma galocha sete léguas preta. É um menino de botas para enfrentar as fortes chuvas de verão na cidade esburacada.
Eu diminuo o passo, ele olha o celular que está num invólucro a prova d’água e dá um enorme bocejo. No mínimo um mês AIDS: um Alto Índice de Defasagem de Sono para ganhar uma renda de merda trabalhando para aplicativos parasitas hospedados em gigantescas plataformas tecnológicas de extração e exploração da mão-de-obra neste século XXI. 
O que me parecia uma criança se confirma a medida em que me aproximo escondida nos óculos e máscara anti-pandemia Covid-19 a caminho da clínica de radiografias dentárias. 
www.google.com.br/images

Quebrei uma peça de tanto apertar os dentes, bruxismo potencializado pela desadministração federal devastadora da pandemia que ceifou mais de duzentas mil vidas. Dente aberto é dor e justifica quebra do isolamento social para tratamento. 
Estou passando próximo a ele que me joga uma olhadela de relance. Tem cabelos encaracolados, castanhos claros, quase marrom como sua calça e grandes olhos azuis protegidos por imensos cílios. Sua boca é rosada e as faces salpicadas de pequeninas sardas. 
Parece mais magro nas imensas galochas. Dou-lhe treze ou quinze anos no máximo; e ele está ali, desabado no meio-fio da rua São Paulo, lívido de sono e cansaço, abrindo uma bocarra enquanto passo perto da caixa Ifood meio destruída e um tanto suja ao seu lado. 
A seus pés está a bicicleta, bem vigiada. A cada dia aumenta o roubo de bicicletas e motocicletas em todas as metrópoles e grandes cidades. 
www.google.com.br/images. "As entregas por aplicativo, fenômeno que ganhou fôlego nos últimos dois anos nas grandes cidades brasileiras, em especial na cidade de São Paulo, foi responsável por um aumento explosivo no número de ciclistas circulando com mochila térmica nas costas e apontando para uma nova atividade econômica, de logística e de mo- bilidade urbana sobre a qual se sabe muito pouco."idem

Um menino-homem a cata da sobrevivência levando uma vida de inseto em meio a tantos outros meninos e meninas Ifood, Loggi, Uber-Eats, Rappi, 99Food...
E como todos eles sonhando uma vida melhor, menos penada, numa bike motorizada e a seguir uma moto Honda 155 cilindradas. 
Eles passam por mim enquanto espero a travessia para o outro lado da pista. Dezenas, centenas de motocicletas e bicicletas, uma nuvem de gafanhotos, totalmente desprotegidos neste louco e assassino trânsito subindo e descendo, ladeiras acima e ladeiras abaixo. 
O garoto fica lá a espera de um chamado da fome. Qual fome? Você tem fome de quê? Fome de MÉQUI, PIZZA, Cerveja, KFC... 

https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2020/07/05/assedio-machismo-suspeita-de-boicote-a-rotina-das-entregadoras-de-app.htm


São seres humanos, garotos e garotas, homens e mulheres, mas parecem insetos, formigas, trafegando com cargas bem maiores que seu peso, catadores de sonhos num campo de riquezas absurdo, onde a parte que lhes cabe são migalhas, papelão, vidro, garrafa Pet e latinhas de alumínio cada vez menores. 

“Não faça meu filho órfão por uma entrega de R$4,00”, um pedido escrito na caixa de motoboy. 

Parece inseto, mas é só mais um garoto, um trabalhador travestindo em micro-empresário, um empreendedor fazendo um "bico" totalmente desprotegido social e legalmente pela ex-justiça do trabalho, hoje esvaziada de direitos, lotada de magistrados que recebem bolsa-moradia de quase cinco salários mínimos, criticando e vilipendiando o bolsa-família e auxílio emergencial da pandemia, pouco se importando com os trabalhadores travestidos em empresas, fazendo seus “corres” para ajudar em casa, ajudar a mãe, ajudar mais de uma família pagar as contas, o aluguel e a comida. 
Ele tem fome, vai comer quando der, um marmitex de cinco reais, sentado na calçada, capacete na metade da cabeça deixando à vista o alto grau de exploração da atividade para governos e sociedade que tudo vêem e nada enxergam. 

Fonte:
1. https://aliancabike.org.br/pesquisa-de-perfil-dos-entregadores-ciclistas-de-aplicativo/

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