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segunda-feira, 19 de abril de 2021

BRAZIL: O LIXO É A PARTE QUE TE CABE...

 

QUANDO O LIXO É VIDA

Foto Marina da Silva. Brasil, Belo Horizonte, MG.


Marina da Silva

Vinte e duas horas e um pouquinho, quinta-feira de lua cheia, quente, abafada e  de lua  escandalosamente cheia.

Na sala de aula quase vazia ainda há vestígios de discussão sobre relações de poder, dominação, exploração, teocracia, vontade política, representação democrática, vontade divina, vontade de ir embora...

Bocejos incontidos escondidos atrás das mãos ou cadernos. Olhos vermelhos cansados, lacrimejantes. Corpos doídos, entortadas colunas, pernas pesadas mal sustentadas em calçados de chumbo.

A lua cheia num manto escuro, num pedacinho retangular do Conservatório neoclássico da faculdade de Música, salpicado de cacos de vidros na quinta-feira de discussão de poder e política, a lua imponente e superior olha a Terra.

Vinte e duas e vinte a exaustão põe fim à discussão e rostos inchados de sono e cansaço sequer conseguem esboçar sorrisos de despedida. Uma mulher chega à porta de saída desanimada para a interminável espera; no mínimo meia hora em pé frente à rua a carona do marido que só sai, pontualmente, as vinte e duas horas e quarenta minutos da escola de Direito.

Para passar o tempo conversa com os vigias que demonstram prazer nesta atenção. Mas na quinta-feira de lua cheia abafada, sufocante a recepção está vazia. E o motivo logo chamou sua atenção. Um corpo magrelo, quase esquelético, pardacento de um homem estendido no chão.

Ao seu lado uma imensa carga de lixo reciclável, mal se sustenta num carroção improvisado. Ao redor do corpo taxistas, os vigias, alguns transeuntes curiosos dão rápidas olhadelas e se dirigem para o ponto de ônibus na virada da esquina e há também um jovem policial militar.

A mulher se encaminha para lá, olha o rapaz magrelo arfando muito, olhos esfumaçados, distantes, a mão colada à roda do seu carrinho.

“O que ouve?” Pergunta.

“O rapaz catador pediu ajuda, passou mal. Uma dor no coração...”

Ela desvia o olhar para sua carroça gigante e calcula que aquela carga tem muito mais de 100 vezes o seu peso em quilos.

“Deve ser fome - alguém diagnostica - e o peso do carrinho..”

“Carrinho?”

Ela pergunta por que ninguém o leva ao pronto-socorro João XXIII a poucos metros dali.

“O guarda já chamou o SAMU, mas não há ambulância disponível.”

“Mas os taxistas? Ninguém pode levá-lo?”

O magricela solta uns gemidos no chão, a mão soldada no carroção. Quer falar alguma coisa. O guardinha, jovem rapagão, colete à prova de balas, coturnos, cinturão, cassetete, revólver e o rádio na mão lhe pergunta o que é?

Grunhidos saem da boca ressequida, os lábios muito finos tremem uma frase inaudível. Um vigia se abaixa para ouvi-lo e avisa ao policial sobre documentos na mochila.

“Mas por que não o levam de taxi?” Retoma a questão a mulher.

“Ninguém quer se comprometer! Avisam-na. Quem leva fica responsável e é encrenca na certa!”

“Mas o garoto pode morrer se não for socorrido a tempo!” Aflige-se.

“O policial já chamou a “rapa”– sussurra-lhe o vigia- Mas eu escutei os caras da radiopatrulha avisando que vão demorar e até mandaram o “gambé” aí pegar qualquer carro que passar na rua. Só que ele já avisou que vai esperar a RP.

“Jesus! Isto não pode estar acontecendo... tantos carros passando, tantos táxis parados enfileirados aqui.”

“O problema dona é aquilo que te falei...”

“Mas e se fosse você, alguém da sua família?”

O vigia ficou cabisbaixo sem resposta e não arredou pé do moço demonstrando sincera preocupação.

“Jeremias Silva” Leu em voz alta o policial.” A radiopatrulha está chegando.”

Passam-se longos minutos angustiantes de espera.

“Se meu marido sair mais cedo da aula...” Pensou aproximando do rapaz magricela ali estirado no passeio da faculdade, esparramado no chão, pernas abertas, canelas finas, pés enfiados num velho e enorme par de tênis, atarraxado à roda do carrinho e esboçando um sorriso confiante que parecia dizer:

“Agora vão saber que sou gente, que tenho identidade e carteira de trabalho, tenho um nome; sou trabalhador não sou vagabundo não.”

Suas feições mudaram ali no chão. Estava pensando...

” Foi  um negócio estragado que comi  e logo hoje que lotei o carrinho de material bom. Vou ficar quieto, esperar, respirar um pouquinho. Esta subida dos Guajajaras me  derrubou.  Puxei forte pra desviar desses taxistas filhos da puta e do busão. Bando de fédaputa do caralho botando pressão. Taxistas e motô de busão, fedaputas do caralho!” Ficara furioso com a ignorância e impaciência deles.

“Vamos Jereba! Recupera logo senão os “homens” te internam e quem vai cuidar do carrinho?”

O barulho da sirene saindo da Afonso Pena e entrando na Guajajaras era disfarce para mostrar serviço e pôs fim ao desassossego no coração da mulher.

“Ainda bem que chegaram. Confessa o vigia. A senhora tem razão, podia ser qualquer um de nós...”

Com o estardalhaço da freada os dois policiais desceram rápido da RP cumprimentando o colega e sem nem olhar para o catador suspenderam seu corpo do chão com extrema facilidade, como se estivessem suspendendo palha ou um trapo de pano velho no chão.

Jeremias infeliz tentava dizer algo sobre seu carrinho. Mas ação brutal dos policiais é rápida; jogam o corpo do rapaz na RP e imediatamente abandonam o local em direção ao HPS cantando pneus acionando a sirene.

As pessoas se dispersam; trabalhadores e estudantes vão em direção ao ponto de ônibus, mas não antes de expressar preocupação com a valiosa carga de papelão, latinhas de alumínio, vidros e garrafas Pet do catador Jeremias.

“Este material ele não vê mais. Vaticinou um taxista. Malandro leva tudo em dois segundos!”

“Não no meu turno, não enquanto eu estiver aqui. Prontificou-se o vigia. Ninguém toca no carroção.”

“Preocupa não gente, daqui a pouco dão falta dele. Neste serviço eles não estão sozinhos, sempre tem mulher, irmãos, pai, mãe e amigos. Informou um taxista abusado. E completou:

“Esse negócio de catar lixo dá dinheiro, senão porque ia ter tanta gente infestando o centro da cidade, atrapalhando o transito e enchendo nosso saco!”

A mulher fez uma cara de desprezo, suspirou alto e seguiu o vigia até a porta de entrada da faculdade.

“Quanta ignorância meu Deus.” Disse desolada. Quem em seu juízo perfeito diria que aquela vida dava lucro? ”Claro que  tem gente lucrando alto com o lixo, mas não são os catadores. Ela podia apontar quem estava se dando bem com o serviço dos catadores começando pela empresa terceirizada que faz o serviço de limpeza da cidade e a prefeitura.

“Liga não dona, numa coisa esta besta tem razão, ele deve ter família, na descida vão dar com a falta dele e passarão neste pedaço, aí entrego o carrinho e dou informação pra eles.”

A carona chegou e a mulher despediu-se dos vigias, mas antes de entrar no carro deu uma última olhada na descomunal carga no carrinho que na lateral, além da bandeira do Brasil, trazia uma frase desabafo:

“A vida me fez um papelão e de papelão eu faço a minha vida!”

 

Foto Marina da Silva. Brasil. BH


 

 

 

 

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