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quinta-feira, 19 de abril de 2018

BRAZIL: VIOLÊNCIA NOSSA DE TODO DIA


CAPITU
Marina da Silva

Estava na copa tomando café quando ela chegou. Já sabia que viria cobrir férias e esperava uma moça, uma mulher, enfim, um adulto.
_ Cheguei! Jogou-se pesada na cadeira, a mochila largada sobre o colo, numa atitude despojada, mas pretensiosa.
Doze anos. Calculei. Sua atitude chamou minha atenção, parecia um caititu fugido do mato. Trazia a cabeça coberta de borboletinhas multicoloridas presas num penteado afro. Trajava um agasalho adolescente, com capuz, na cor rosa tais quais os brincos de argolas e as sandálias. Parecia uma boneca latina, cabelos tonalizados de vermelho, pele morena, lindas sobrancelhas arqueadas.
_ Meu nome é Bárbara! Respondeu-me; a voz forte, o cenho fechado, o que lhe conferia um ar de maioridade.
_ Eu moro numa favela! E contou-me as muitas atribulações de sua longa existência: o colégio, a turma do bairro, um namorado complicado, presidiário, tão velho quanto ela e morto num destes acertos da favela.
_ Você é muito bonita! Disse-lhe. Parece uma boneca.
_ Barbie? Sorriso debochado entortando-lhe os lábios.
_ É, Barbie.
A menina desarmou-se e me olhou um tanto intrigada, num gesto e trejeito de cabeça que me trouxe à memória, Capitu, a dona do olhar oblíquo e dissimulado, personagem do clássico livro de Machado de Assis, Dom Casmurro.
O resto do dia e durante a semana inteira, para aonde me virasse, lá estava ela: Barbie. Vinte anos completos, informara-me. Fora muito bem no treinamento para dar conta de tudo e mexer nos novos equipamentos de esterilização, que para testá-la, já na sua primeira semana de trabalho, careciam de manutenção e pelo técnico foram levados.
Uma prova difícil, um teste de coragem como todos os que a vida lhe aplicava. Muito sagaz e inteligente, passou em todos, Capitu.
_ O que tem de violência boa aí no jornal?
_ Meu primo não pagou a dívida e está seqüestrado pelos carinhas lá do bairro!
_ O líder da favela está preso e as pessoas que ele expulsou voltaram para retomar o comando.
_ Meu colega de escola foi assassinado no final de semana! Meu amigo de infância, tá aí nessa página...
Não lhe neguei os ouvidos, não emudeci suas queixas, não lhe cortei as falas. Deixei que se aproximasse que tentasse assustar-me, aterrorizar-me, expulsando e transferindo a mim, seus medos, o pavor e terror ali obliquamente em seus belos olhos estampados. Pedia socorro, queria um abrigo seguro.
_ Houve muitos tiros essa noite e eu corri para o quarto dos meus pais! A gente tem que mudar de lá! Minha mãe falou que meu quarto é mais seguro, não tem janelas. Não quis nem saber, preferi ficar perto do meu pai e dela.
_ O exílio _ pensei_ Capitu precisa ser exilada para manter-se salva, segura. Não um exílio para expiar culpas, mas para garantir-lhe a vida, mantê-la viva e a salvo, para terminar os estudos, namorar, ter um emprego, ter oportunidades, usar suas roupas cor-de-rosa tal qual Barbie.
_ Vocês vão sentir minha falta! Ah vão!
_ Claro que não! Você é travessa, muito levada!
_ Só faltam duas semanas! Sorria às vezes uma dança ensaiava.
_ Só mais esta semana e vou ficar desempregada... Olhos retificados pelo desamparo.
_Daqui a três dias... O pessoal quer fazer uma festa de despedida! Não havia como não adotá-la. Uma bonequinha, frágil, pequenina, muito esperta e sagaz.
_Fica com meu telefone! Voz firme, dura como a vida de risco que levava. _ E liga pra mim! Ordenou-me.
_ Eu ligo.



ATLAS DA VIOLÊNCIA 2017.

http://www.comciencia.br/a-violencia-no-brasil-tem-cara-cor-e-endereco/

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