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sábado, 5 de maio de 2012


UTOPIA REVISITADA
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Sérgio Antunes de Freitas

“Um mapa do mundo em que não aparece o país Utopia não merece ser guardado.”
Oscar Wilde

O solitário gostava de observar as crianças brincando no parquinho, sentado em um muro de pedras feito com mão-de-obra dos escravos. Muito antigo, pois, desde o ano de 1886, quando Thomas More foi beatificado, não há escravidão na Ilha Utopia. A pena maior para os criminosos não é mais o cativeiro, é ser banido e ter que viver em outros países, onde o humanismo não decide grandes coisas; geralmente, os ocidentais.
O solitário nem pensava nisso, apenas se distraía, apreciando as crianças.
Elas desciam por cordas atreladas a sinos de diferentes tons. A cada momento, o carrilhão produzia música diferente.
Quando chegavam aos extremos inferiores das cordas, as crianças se deixavam cair em uma rede de proteção. Saiam pulando e subiam iguais a bichos, de quatro pés, por um barranco, para descer novamente pelas cordas. Blim, Blam, Blom, Blem, Blim.
As risadas e os gritos infantis combinavam com os sons metálicos, em afinação perfeita, como acontece com todos os barulhos naturais e artificiais, desde que em ambiente harmônico.
Ele se divertia muito com a imagem de um menino gorducho, que descia mais devagar que os outros, apoiando às vezes os pés nos sinos, provocando sons surdos. Blem, Blim... Bloc!
Os momentos de paz e fontes sonoras inspiravam suas composições amadoras borradas em um antigo cravo flamengo de dois teclados.
Mesmo de outros locais, ele se deleitava, ouvindo os sons longínquos, perfeitamente conhecidos. Muitas vezes, conseguia identificar qual a criança estava descendo pelas cordas e de que altura havia pulado na rede.
Um dia, o céu amanheceu com nuvens escuras. O solitário se dirigiu ao parque e encontrou o silêncio. Por vezes, o vento soprava notas menores e sua preocupação aumentava, devido à ausência dos pequenos.
Uma premonição trouxe à sua mente imagens terríveis do massacre em uma escola de Beslan, na Rússia.
www.google.com.br/images 1º de setembro de 2004: "um grupo de terroristas islâmicos tchetchenos e árabes invadiu uma escola no interior da Rússia, submeteu um grupo de mais de mil pessoas a três dias sem água e sem comida e matou mais de 330 delas --na maioria crianças-- no pior atentado terrorista após o 11 de Setembro."

Um tiro no peito lançava uma menina contra o quadro negro. Um armário era aberto e crianças escondidas e assustadas eram metralhadas impiedosamente. Depois, cadáveres vivos levavam seus filhos, cadáveres de verdade, para seus berços finais.
E enterravam junto as suas vidas.
O solitário começou a se apavorar com a ausência das crianças e com o sentido de terror que as lembranças da violência haviam lhe impingido.
O vento mostrou-se mais intenso, movimentando levemente as campânulas, em sons desencontrados, mas que lembravam vagamente uma marcha fúnebre descompassada.
Seu temor tornou-se cólera e vergonha, por pertencer a uma família de animais tão perversos e inábeis no trato de desavenças.
Os sentimentos infestos cresciam, quando começou a ouvir uma chinfrineira ao longe. Colocou-se em guarda, como um cão, e começou a identificar a algazarra das crianças atrasadas.
Saltou de sua solitude e foi recebê-las, abraçá-las, louvá-las. E desceu nas cordas também, buscando fazer uma base de acompanhamento para os solistas tão principais.
Cansou e resolveu ir para o trabalho, anestesiado, tentando acompanhar com assobios os brados dos sinos. Blim, Blam, Blom, Blem.... Bloc!
- É o gordinho!
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Sérgio Antunes de Freitas

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