ANÁLISE ECONOMICA
Minas Gerais: a ilusão do déficit zero com o crescimento da dívida pública
Cláudio Gontijo
Doutor em Economia pela New School for Social Research, em New York, NY, Estados Unidos. Professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG; Ex-diretor da Fundação João Pinheiro e ex-Chefe da Assessoria Econômica da Secretaria da Fazenda de Minas Gerais durante o governo Itamar Franco. Presidente do Conselho Regional de Economia de Minas Gerais.
Texto especialmente atualizado e adaptado do livro intitulado “Dívida Pública do Estado de Minas Gerais – A Renegociação Necessária”, de autoria dos economistas mineiros Fabrício Augusto de Oliveira e Claudio Gontijo.
Quando assumiu o comando do estado de Minas Gerais, em 2003, o diagnóstico feito pelo governador Aécio Neves sobre a situação das finanças estaduais foi de que encontrara um estado desmantelado e mergulhado em um quadro de ruína financeira. Tal diagnóstico encontra-se retratado em várias passagens do livro “Choque de Gestão” (2006), como, por exemplo, na página 13, onde, em artigo especialmente para ele elaborado, o então técnico do governo, Antônio Anastasia, afirmara que “Minas Gerais apresentava um gravíssimo quadro fiscal, com expressivo déficit orçamentário desde 1996, pelo que faltavam recursos para todas as despesas, inclusive para o regular e tempestivo pagamento da folha de pessoal”. Ou ainda, na página 15, onde dizia que “não somente enfrentávamos uma crise fiscal, como também a forma de funcionamento do Estado estava obsoleta e bolorenta (...)”. Era esta a mesma situação diagnosticada pelos titulares da Secretaria da Fazenda do estado, como se depreende de passagem também de artigo incluído no mesmo livro: “o estado de Minas Gerais [...] apresentava, na apuração de seus resultados orçamentários de 2002, uma das piores equações fiscais dentre as unidades federativas” (Norman e SEF, 2006).
Diante desta situação, o governo entendeu que não poderia levar à frente qualquer programa de desenvolvimento sem antes promover o saneamento de suas finanças, já que este desequilíbrio operaria, inevitavelmente, como obstáculo para este objetivo. Por isso, concebeu, idealizou e divulgou, para a sociedade mineira, um programa denominado Choque de Gestão, com o qual se propôs, numa primeira etapa, sanear as contas do estado, visando criar as condições minimamente requeridas para se avançar na retomada dos investimentos públicos e, com isso, abrir os caminhos para o reingresso de sua economia numa etapa de crescimento sustentado.
Fabrício Augusto de Oliveira
Doutor em Economia pela Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP; Professor da Escola do Legislativo do Estado de Minas Gerais; Ex-Secretário Adjunto da Secretaria da Fazenda de Minas Gerais durante o governo Itamar Franco. Vice-Presidente do Conselho Regional de Economia de Minas Gerais.
Sabia-se, no entanto, não ser esta uma tarefa fácil. Tanto isso é verdade, que no Plano Plurianual de Governo (PPAG) do período 2003-2007 – o plano do primeiro mandato do Governo Aécio Neves – seria projetada, para as contas do estado, uma melhoria gradativa de seus resultados orçamentários, prevendo-se que, apenas em 2007, o estado passaria a operar, finalmente, com superávits orçamentários correntes, excluídas as operações de crédito, como mostra a Tabela 1 (Oliveira e Riani, 2006).
Já em 2004, no entanto, diante dos melhores resultados orçamentários que começaram a ser colhidos, os quais o governo atribuiu aos ganhos mais rápidos do que os esperados com a implementação do Choque de Gestão em curso, com o qual, na campanha de marketing por ele desfechada na imprensa nacional, teria conseguido, em tão pouco tempo, equilibrar as contas do estado e alcançar o cobiçado “déficit zero”, que se tornou o símbolo de uma administração eficiente.
Sem mencionar a situação do estoque da dívida de Minas e dos encargos que representava para o estado e dedicar-se à divulgação da proeza realizada pela sua administração no equilíbrio dos fluxos orçamentários, o governo, com base em um conceito de pouco significado econômico – o de “resultado orçamentário” – lançou uma cortina de fumaça sobre a situação, obliterando os desequilíbrios reais de suas contas, provocados pelos encargos dessa dívida, e vendeu a imagem de competência de sua administração com a implementação do Choque de Gestão. Inaugurou, com isso, um período, que se prolongaria até o final de seu segundo mandato, em 2010, em que se garantiria um grande desconhecimento da situação real das finanças do estado e em que, para assegurar o mito do “déficit zero”, sua administração se eximiria de adotar iniciativas efetivas para o equacionamento de sua dívida.
Na verdade, como se procura discutir em seguida, nem todos os ganhos obtidos neste período podem ser atribuídos ao programa Choque de Gestão, nem os melhores resultados fiscais amplamente divulgados na imprensa nacional, com base no conceito de “resultado orçamentário” podem ser considerados, como o governo procurou transmitir, como se com ele tivesse sido possível alcançar um ajuste estrutural das contas do estado.
O Choque de Gestão e o déficit zero: ilusões contábeis e eficiente política de marketing
Contando com ajuda extra
Uma eficiente política de marketing patrocinada pelo governo mineiro na imprensa nacional deu ao Choque de Gestão notoriedade no País e garantiu aos responsáveis pela sua concepção e implementação dividendos financeiros, pelo fascínio que despertou em muitas administrações, com a sua exportação para outros estados. Segundo a imagem que se vendeu do programa, em apenas dois anos o governo mineiro conseguira sair de uma situação de penúria financeira, equilibrar suas contas, com a geração de superávits orçamentários e recolocar o estado nos trilhos do desenvolvimento econômico. Todavia, apesar dos frutos que com ele foram gerados e das ilusões que foram criadas em torno de seus resultados, é improvável que o mesmo tivesse obtido tanto sucesso se não tivesse contado com a ajuda de outros fatores intervenientes neste processo que não faziam parte de seu arcabouço.
No campo fiscal, o programa procurou conciliar medidas emergenciais com medidas estruturantes. Com as medidas de curto prazo, seu objetivo foi o de dar respostas imediatas para o desequilíbrio financeiro do estado e criar as condições mínimas de governabilidade para a nova administração.
Com as estruturantes, garantir a sustentabilidade fiscal intertemporal e permitir ao estado recuperar sua capacidade de atuar como indutor do desenvolvimento econômico e social. O Quadro 1 lista as principais medidas que foram adotadas no âmbito deste programa.
Por mais força que essas medidas tenham tido para melhorar as finanças do estado, é improvável que teriam conseguido, em tão pouco tempo, mesmo por que muitas delas só se traduziriam em ganhos no médio e longo prazo, retirá-lo de uma situação de aguda crise fiscal e de paralisia da máquina pública e conduzi-lo ao paraíso do equilíbrio intertemporal das contas públicas, como cantado em verso e prosa no livro “O choque de gestão em Minas Gerais” (Vilhena, Martins, Marini e Guimarães, 2006). Na verdade, caso a economia não tivesse apresentado um comportamento altamente favorável a partir de 2003 e uma ajuda extra das receitas extraorçamentárias não tivesse sido dada ao governo, além de se ter contado com a contribuição obtida com a adoção do instrumento da contabilidade criativa, certamente essa história não seria tão exitosa.
Quadro 1 - Governo de Minas: principais medidas adotadas no campo fiscal no âmbito do programa Choque de Gestão
Receitas
Programa Modernizador da Receita:
- -Adoção do Simples Minas
- -Desoneração tributária de 150 produtos da cesta básica
- -Simplificação de procedimentos tributários
- -Inclusão de novas mercadorias no instituto de substituição tributária
- -Adoção de medidas reativas à guerra fiscal
- -Intensificação do combate à sonegação
Revisão e elevação das alíquotas do IPVA, ITCD e das taxas;
Melhoria da receita patrimonial (dividendos das estatais estaduais, remuneração dos serviços bancários, administração da rede bancária da folha de pagamento do estado);
Reajuste no valor da Unidade Fiscal do Estado de Minas Gerais (UFEMG);
Incremento das receitas da administração indireta (fundações, autarquias etc.).
Gastos
Decreto de contingenciamento, em 2003, de 20% das despesas financiadas com recursos ordinários do Tesouro em relação aos valores executados em 2002: redução real de 5,9% das despesas de custeio e de 29,2% dos investimentos;
Congelamento do salário do funcionalismo: queda real de 5% das despesas com salários;
Reforma Administrativa do Estado: redução de 30% no número das secretarias, mediante fusão; exclusão de 1858 cargos comissionados;
Revisão geral e extinção de benefícios do funcionalismo;
Redução dos salários do governador, do Vice, dos secretários de estados e dos secretários-adjuntos;
Centralização da folha de pagamentos do funcionalismo na Secretaria de Estado do Planejamento e Gestão;
Criação do sistema de compras do estado por meio de leilões eletrônicos;
Aprovação das Parcerias Público-Privadas (PPPS), com o objetivo de obter recursos para a realização de investimentos.
Sem contar com um quadro macroeconômico favorável em 2003, quando a economia mundial apenas começava a reencetar a marcha rumo a um período de forte crescimento e a economia brasileira ainda padecia dos efeitos residuais da desconfiança no Governo Luiz Inácio Lula da Silva, o programa de ajuste do governo teve de se apoiar predominantemente no corte dos gastos para diminuir o desequilíbrio fiscal. O período de “caça ao gasto” que marca este ano conseguiu produzir uma queda real de 3,1% das despesas correntes, com o congelamento dos salários do funcionalismo (queda de 5% reais no ano), contração real também de 5,9% das despesas de custeio e de 29,2% dos investimentos. Como as receitas correntes, apesar do baixo crescimento do PIB no ano, cresceram 3,4%, em termos reais, e o ICMS 5,2%, o governo conseguiu, no ano, reduzir o déficit orçamentário potencial de R$ 2,3 bilhões para apenas R$ 227 milhões, o que pode ser considerado um feito, mas que contou com a ajuda de receitas e economia de gastos extraorçamentários, que nada tinham a ver com o Choque de Gestão.
Do lado das receitas, R$ 223 milhões vieram do governo federal, relativos ao ressarcimento de despesas do estado com as estradas federais, que haviam sido negociados no último ano da administração Itamar Franco. Do lado dos gastos, o governo estadual deixou de pagar R$ 250 milhões de encargos da dívida com a CEMIG, referentes à Conta de Resultados a Compensar (CRC), e o governo federal concordou com o seu pleito de abater R$ 119,5 milhões do montante que teria de pagar à União, relativos aos encargos da dívida renegociada, como uma espécie de devolução por ele feito de Bônus que havia emitido e colocado no exterior e que foi incluído na dívida intralimite. Ou seja, sem esses ganhos extras, mesmo o resultado orçamentário teria se revelado bem inferior.
Embora reconhecidamente ajustes fiscais sejam mais bem-sucedidos quando realizados pelo lado dos gastos, como foi feito no primeiro ano do governo, sabe-se também que estes apresentam limites políticos, sociais e econômicos pelo que podem representar para a paralisia da máquina pública e dos investimentos, para a insatisfação do funcionalismo e da população em geral, à medida que prejudicam a oferta de bens públicos. Por essa razão, dificilmente teria sido podido manter essa mesma política por tempo mais prolongado sem o governo se defrontar com fortes questionamentos e mesmo com uma situação que, não se pode descartar, poderia chegar a um quadro de ingovernabilidade.
A melhoria substancial do quadro macroeconômico, a partir de 2004, aliada ao expressivo aumento, em 2003 - depois de passado o quadro eleitoral, dos preços da energia elétrica, combustíveis e comunicações, que respondem, hoje, por 52,2% da arrecadação de ICMS estadual, resolveu essa questão e permitiu, ao governo, mudar a equação do ajuste, deslocando o seu principal instrumento para o lado da receita. A Tabela 2 mostra a importância que o crescimento econômico conhecido pelo estado a partir deste ano propiciou para o seu programa de ajustamento fiscal.
Os ganhos espetaculares de receitas, em termos reais, obtidos a partir de 2004, que em alguns anos foram superiores a 10%, propiciaram, ao governo, não somente avançar na melhoria dos indicadores fiscais, em geral, enquadrar-se mais rapidamente do que se projetava nos parâmetros da LRF – Lei de Responsabilidade Fiscal e, de quebra, começar a contar com mais recursos para a realização de investimentos públicos, o que já ocorreria com mais força a partir de 2005, quando também se abriram, novamente, as portas para seu retorno ao mercado de crédito. Esta situação mais confortável só seria interrompida em 2009, quando os efeitos da crise mundial deflagrada em 2007/2008 derramaram-se também sobre o Brasil e castigaram com maior severidade as economias com estruturas produtivas em que as commodities têm peso considerável, como no caso do estado de Minas Gerais, prejudicando mais fortemente sua situação fiscal. Em 2010, no entanto, superada a crise do crédito subprime, o PIB voltou a crescer mais fortemente que o do Brasil, impactando novamente de forma positiva as receitas do estado.
Além do crescimento mais espetacular que teve início em 2004, o governo foi beneficiado também, a partir deste ano, com o aumento das receitas das transferências do governo federal provenientes da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre os combustíveis em geral (CIDE-combustíveis), cuja aprovação, na Reforma Tributária de 2003 (EC 42/03), reservou 29% de sua arrecadação para serem distribuídos entre os estados e municípios. Só para se ter uma ideia do que este ganho representaria, cabe registrar que, tendo atingido o montante de R$ 89,2 milhões no primeiro ano da entrada em vigor desta nova regra de partilha daquele tributo, este valor evoluiu para R$145,7 milhões em 2005 e para R$ 131,8 milhões em 2008.2
Por outro lado, é importante destacar que a evolução mais favorável dos indicadores fiscais e financeiros da LRF – Lei de Responsabilidade Fiscal contou também com a ajuda extra do que atualmente é considerado como contabilidade criativa3: pelo menos entre 2003 e 2006, o cálculo realizado pelo Poder Executivo alargou indevidamente a base da Receita Corrente Líquida (RCL), de acordo com os Relatórios do TCEMG – Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais sobre a prestação de contas do governador, o que propiciou a antecipação de seu enquadramento nos limites de gastos com pessoal e endividamento estabelecidos pela LRF-Lei de Responsabilidade Fiscal e, com isso, seu retorno mais rápido ao mercado de crédito4. Embora depois de 2007 tenha se verificado uma convergência entre os valores da RCL calculados pelo Executivo e pelo TCEMG, como mostra a Tabela 3, o fato é que, sem este artifício, os resultados alcançados com o Choque de Gestão não teriam sido tão espetaculares nos primeiros anos como os divulgados pelo governo.
De qualquer forma, mesmo levando-se em conta que o Choque de Gestão teria, em alguma medida, contribuído para reduzir as dificuldades orçamentárias do estado, considerando os ganhos com ele obtidos tanto pelo lado das receitas como dos gastos, não se pode desconsiderar, de um lado, nem a importante ajuda extra que recebeu dessas outras forças para a sua melhoria, nem, de outro, que, apesar da intensa propaganda oficial, não se conseguiu de fato, retirar o estado do “inferno fiscal” em que se encontrava em 2002, abrindo-lhe, com o programa, as portas do paraíso para o crescimento econômico sustentado, apoiado numa sólida condição fiscal, liberta das amarras do endividamento. Uma análise do desempenho real das contas públicas durante a gestão Aécio Neves confirma que esta situação se encontrava longe de ser alcançada, apesar do discurso triunfante do seu governo.
Desfazendo o mito do Déficit Zero
O conceito utilizado pelo governo do estado de Minas Gerais, durante a administração Aécio Neves, para vender a imagem de que conseguira alcançar o equilíbrio das contas públicas, zerando o déficit público, foi o de Resultado Orçamentário. De fato, analisando os dados da Tabela 4, é possível constatar que, desde 2004, as contas do governo se tornaram superavitárias, à luz deste conceito, depois de amargar seguidos anos de déficit. E ainda que, embora essa inflexão tenha ocorrido neste último ano, já em 2003 o governo começava a colher frutos do ajuste realizado e do ambiente macroeconômico mais favorável, considerando que o déficit potencial projetado de R$ 2,3 bilhões para este ano acabou reduzido a R$ 227 milhões.
Este é, no entanto, um conceito enganoso - e qualquer técnico mais bem preparado de finanças públicas sabe bem disso -, por incluir, do lado das receitas, as Operações de Crédito, as quais, apesar de constituírem receitas que ingressam nos cofres públicos, representam uma dívida contratada que terá de ser paga no futuro. Por isso, o conceito pode transmitir a falsa imagem de uma situação de equilíbrio, quando, na verdade, essas contas se encontram em desequilíbrio.5
Se excluídas as Operações de Crédito do lado da receita (conforme terceira coluna da tabela), os resultados deixam de se apresentarem tão espetaculares como no quadro anterior, mas, mesmo assim, não há como negar sua evolução mais favorável no período considerado: além de redução expressiva dos desequilíbrios orçamentários após 2003, o estado conseguiu registrar superávits somente em três anos, 2004, 2005 e 2008. O retorno de déficits mais elevados em 2009, 2010 e 2011 pode ser explicado, sobretudo, pelos efeitos da crise econômica mundial que derrubou as receitas do governo, especialmente no primeiro ano.
Um indicador que revela melhor o desempenho das finanças públicas e também a força e consistência do ajuste realizado é o que espelha a capacidade do governo de economizar recursos para efetuar o pagamento dos encargos de sua dívida, de forma a impedir que o seu crescimento, no tempo, se torne motivo de preocupação para seus credores sobre sua capacidade de solvência. Conhecido como Resultado Primário, este indicador, em Minas Gerais, apresentou uma trajetória bastante favorável no período, como se constata na Tabela 5, evoluindo de níveis mais ínfimos nos primeiros anos após a assinatura do contrato da dívida com a União (até 2002) para níveis elevados entre 2003 e 2008, próximos de 10% da Receita Corrente Líquida (RCL) do governo. O declínio registrado neste indicador, em 2009 e 2010, deve-se, como já discutido, à crise econômica, que minou as receitas do estado e reduziu sua capacidade de geração de superávits primários. Estranhamente, este não foi, no entanto, um conceito explorado e divulgado pelo governo para divulgar os bons resultados que vinha obtendo na gestão das suas finanças.
O conceito de Resultado orçamentário, além de conter elementos da receita que podem resultar em equívocos na avaliação do desempenho real das finanças do governo, podendo, portanto, transmitir uma falsa situação de equilíbrio, ainda esconde, no caso brasileiro, por força da legislação e regulamentação do contrato da dívida com a União, despesas incorridas com o pagamento dos encargos dessa mesma dívida, que deixaram de ser pagos e que, por essa razão, não transitam pelo orçamento, sendo diretamente contabilizadas em seu estoque, podendo, portanto, só serem percebidas pela análise de seu balanço patrimonial6. Este fato torna, ainda mais uma ficção, o Resultado Orçamentário, para avaliação do desempenho e do resultado efetivo das contas do governo. Para essa avaliação, que considera, portanto, a totalidade dos encargos da dívida não pagos pelo governo, o conceito relevante é o de Resultado Nominal, que o governo Aécio Neves deixou de divulgar para o público, ao longo de todo o seu mandato, para não prejudicar o mito do déficit zero.
A Tabela 6, cujos dados podem ser extraídos, inclusive do site da Secretaria da Fazenda do Estado de Minas Gerais, nos balanços orçamentários e nos Relatórios de Gestão Fiscal, mostram a evolução tanto do serviço da dívida não pago (juros e amortizações) ao longo do período em análise, quanto do Resultado Nominal, o qual revela, efetivamente, se o estado teria, ou não, se defrontado com um desequilíbrio em suas contas. Como se percebe, ao contrário da propaganda oficial, o estado teria incorrido em gigantescos déficits nominais durante toda a gestão do governador Aécio Neves, o que explicaria a manutenção da trajetória preocupante de crescimento da dívida pública também neste período. Tal fato se explicaria, analisado por este ângulo, principalmente pelo montante dos encargos da dívida que deixaram de ser pagos, correspondentes a 59% de seu total, os quais se incorporaram ao seu estoque, projetando encargos crescentes no futuro.
A expressividade do déficit nominal do governo, o qual tem alimentado o crescimento da dívida fiscal, fica mais evidente quando se considera sua representatividade como proporção da receita. Como mostra a Tabela 7, o déficit nominal, que corresponde, na ausência de outros fatores determinantes, ao serviço da dívida fiscal não pago, atingiu, em alguns anos, como proporção da Receita Corrente Líquida (2001, 2003, 2008 e 2010), percentual superior a 20%. Em relação à Receita Líquida Real, essa proporção é ainda mais expressiva: ultrapassou a casa dos 30% em dois anos, 2003 e 2010 e, em mais (2001, 2004 e 2008), a dos 20%, situando-se em níveis mais reduzidos apenas nos demais anos da série.
Na teoria das finanças públicas, a dívida só aumenta por quatro motivos: 1) para cobrir desequilíbrios orçamentários provocados por gastos primários superiores às receitas; 2) para a realização de investimentos para os quais não se conta com recursos orçamentários suficientes; 3) para a cobertura de despesas emergenciais e de passivos imprevistos que surgem e para os quais não se conta com dotações orçamentárias; e 4) para o refinanciamento da dívida e de seus encargos, quando não se dispõe também de recursos orçamentários para o seu pagamento.
Até mesmo por força do contrato da dívida assinado com a União, em 1998, o governo do estado tem conseguido, desde a administração Itamar Franco, gerar superávits primários para efetuar, ainda que parcialmente, os encargos financeiros da dívida renegociada. De outro lado, devido à asfixia financeira por ele enfrentada, os investimentos realizados só voltaram a adquirir alguma expressividade a partir de 2004-2005, tendo atingido R$ 3.993,6 bilhões em 2010 e R$ 3.300,2 bilhões em 2011. Mesmo adotando a hipótese bastante simplificadora de que todas as novas contratações de empréstimos realizadas entre 2006 e 2011, que totalizaram R$ 4,0 bilhões, tenham sido destinadas para o seu financiamento, e deduzirmos este montante do estoque da dívida contratual no final de 2011, que chegou a R$ 69,2 bilhões, ainda assim restaria um saldo de R$ 65,2 bilhões, indicando que o seu crescimento não poderia ser explicado por este esforço adicional de investimento.
Considerando, por último, que as despesas emergenciais e o surgimento de passivos contingentes (reconhecimento de “esqueletos”) não têm sido expressivos ao longo de todo este período analisado, o maior crescimento da dívida só pode ser explicado predominantemente pelos seus encargos que, por não terem sido pagos, tiveram de ser refinanciados, expressando o déficit nominal em que teria incorrido o governo.
Diante destes resultados, é possível concluir que o propalado déficit zero da administração Aécio Neves/ Antonio Anastasia, bem como o decorrente ajuste estrutural das contas do estado, não teria passado de um engodo destinado a atribuir-lhe uma aura de competência e eficiência na gestão dos recursos públicos, e que a dívida, indiferente a este anseio, continuou mantendo-se impassível em sua trajetória de crescimento preocupante.
A dívida em expansão, apesar deo déficit zero
Entre 31/12/2002 e 31/12/2011, a dívida contratual (DC) do governo do estado de Minas Gerais evoluiu, em valores nominais, de R$ 34.450,5 milhões para R$ 69.230,4 milhões, como mostra a Tabela 8 -uma variação de 101,0%. A dívida consolidada líquida (DCL), um parâmetro importante na definição do limite de endividamento dos entes federativos, mas impreciso para avaliar a sua efetiva condição, aumentou, neste mesmo período, de R$ 32.941,7 milhões para R$ 61.005,9 milhões, com uma variação nominal de 85,2%. Nesse período, a variação do Índice de Preços ao Consumidor Ampliado (IPCA), calculado pelo IBGE foi de 66,9% e o Índice Geral de Preços (IGP-DI), calculado pela Fundação Getúlio Vargas, que é também utilizado como indexador da dívida dos estados com a União, de 97,4%. Isso significa que, em termos reais, considerando qualquer um destes indexadores, a dívida contratual continuou em expansão, apesar dos elevados encargos que o estado vem arcando para o seu pagamento, desde a assinatura do contrato com a União.
Para avaliar melhor as causas que têm garantido o crescimento da dívida do estado em níveis superiores às taxas de inflação, é importante analisar a sua composição, visando identificar as fontes credoras que mais têm provocado pressões sobre os seus níveis. A Tabela 9 apresenta a evolução da composição da dívida contratual do estado entre os anos de 2002 e 2011, fornecendo elementos para essa avaliação. É interessante notar que tanto a dívida do estado com a União como a dívida do mesmo com a CEMIG conheceu, no período em análise, uma variação superior à taxa de inflação acumulada no período, indicando que ambas aumentaram, em termos reais, apesar do pagamento dos encargos realizados, significando que estes não teriam sido suficientes para se avançar na sua amortização. Apenas a menor expansão das “outras dívidas”, de 16%, vis-à-vis a inflação, permitiu que esta questão não se mostrasse mais grave, embora nos últimos anos da série, por ter o estado conseguido retornar ao mercado de crédito com o seu reenquadramento no limite de endividamento da Lei de Responsabilidade Fiscal, e de ter recomeçado a realizar novos empréstimos, aquelas tenham voltado a crescer. Pelo que representam no conjunto da dívida do estado, algo próximo de 93%, e pela evolução desfavorável para esta questão, tanto a dívida com a União como a dívida com a CEMIG merecem uma análise mais acurada, visando identificar as razões de seu crescimento real.
No caso da dívida com a União, como visto anteriormente, os elevados encargos incidentes sobre o estoque da dívida renegociada pelo estado (IGP-DI + juros reais de 7,5% ao ano), associados a uma base considerável deste montante, têm feito com que os pagamentos obrigatórios exigidos pelo contrato, 13% da Receita Líquida Real, sejam insuficientes até mesmo para cobrir, em alguns anos, a própria correção da dívida, ocorrendo, portanto, um descolamento entre encargos/pagamentos e garantindo o seu crescimento real no tempo. Só para se ter uma ideia deste descolamento, basta registrar o fato de que enquanto o IGP-DI (que pode ser chamado de índice da “inflação da dívida”) acumulou uma variação de 225,4% no longo período que vai de 1998 a 2011, a do IPCA (o índice da inflação oficial) não passou de 137,2%, enquanto o deflator implícito do PIB (que pode ser considerado a “inflação do produto”) ficou em 195,9%.
Apesar disso, e da importância que representaria para as finanças do estado alterações nestes parâmetros de correção desta dívida, não se tem notícia de que alguma iniciativa mais contundente tenha sido adotada pelo governo de Minas, neste período, visando abrir caminhos para sua renegociação com o governo federal. O que é compreensível em face da fantasia que se criou em torno do mito do déficit zero. Afinal, desfrutando do status que lhe foi conferido pela sua obtenção, insistir nesta questão poderia levar até mesmo à perda de credibilidade do governo neste campo.
Em se tratando da dívida com a CEMIG, a situação chega a ser mais grave não tanto pelo seu montante quando comparado ao da União, mas aos seus custos, que são ainda mais onerosos, o que termina imprimindo-lhe uma velocidade de crescimento maior que a observada para a dívida com a União, mesmo por que o pagamento parcial de seus encargos tem sido bastante reduzido em face de seus encargos totais.
Negociada em 1995 pelo Governo Eduardo Azeredo, com encargos correspondentes à correção pela UFIR e, a partir de 2001, pelo IGP-DI acrescido de juros reais de 6% ao ano, os últimos foram imprudentemente elevados para 12% no final do Governo Itamar Franco, aumentando sobremaneira os seus custos para o estado e para o contribuinte, com o comprometimento de recursos dos cofres públicos para uma empresa que se encontrava com quase 80% do capital privatizado.
Durante o Governo Aécio Neves/Antonio Anastasia, algumas modificações seriam introduzidas nas condições de remuneração dessa dívida, mas em tudo insuficientes para restabelecer as contempladas no contrato original e para aliviar as pressões sobre o endividamento do estado com essa empresa: de acordo com o 4º Aditivo do contrato com a CEMIG, de 23 de janeiro de 2006, manter-se-ia a correção monetária do débito do estado pelo IGP-DI, enquanto os juros reais sobre ele incidentes seriam reduzidos de 12%, que vigoravam desde 2003, para 4,009% ao semestre e 8,18% ao ano, pro rata tempore, capitalizados semestralmente, em 30/06 e 31/12, os quais poderiam ser elevados para 10%, no caso de o estado deixar de pagar três parcelas sucessivas, e para 12% em caso de inadimplemento, de acordo com as condições estabelecidas neste Aditivo. Além disso, para garantir o recebimento das parcelas que deveriam ser semestralmente feitas pelo estado até o ano de 2035, o Aditivo autorizava a CEMIG a reter até 65% dos dividendos de juros sobre o capital próprio a que o estado teria direito sobre os lucros ordinários distribuídos pela empresa, o correspondente a 7,23% do lucro líquido, e, caso estes fossem insuficientes, também dos extraordinários, podendo o percentual retido chegar a 100%, em ambos os casos, ou a 11,12% do total do lucro líquido da companhia. Uma situação tão favorável para a empresa que o Aditivo vetaria a possibilidade de o estado antecipar o pagamento de mais de duas parcelas da dívida, no caso do uso dos dividendos e juros sobre o capital próprio recebidos da empresa, e de mais de três parcelas, caso fossem utilizados, para essa finalidade, recursos próprios8.
Não surpreende, assim, que com a manutenção de encargos tão elevados, apesar da redução dos juros reais contemplada neste 4º Aditivo, a dívida com a CEMIG tenha se mantido numa trajetória de acelerado crescimento, em nível bem superior ao da dívida com a União, com condições menos desfavoráveis, mesmo com o pagamento anual de pelo menos parte de seus encargos pelo estado. Se, com este Aditivo, pode-se considerar que a generosidade dos juros reais de 12% ao ano do Governo Itamar Franco teria sido atenuada, sua fixação no nível de 8,18%, precedido da correção pelo IGP-DI não pode ser vista, também, como se o governo estivesse preocupado em aplicar um verdadeiro Choque de Gestão nesta dívida e em pavimentar o caminho para garantir o ajuste estrutural das contas do estado.
Se os elevados custos dessa dívida se encontram na base deste crescimento, também a insuficiência de pagamentos semestrais/anuais dos encargos em relação aos acordados no 4º Aditivo pode também ter contribuído para essa maior expansão. A análise desagregada dos fatores que teriam contribuído para tanto – correção e remuneração dos valores, montante dos encargos pagos em relação aos devidos, juros moratórios incidentes sobre parcelas em atraso ou não pagas etc. – exige o acesso às planilhas desta dívida, as quais, infelizmente, não estão disponíveis.
Fonte: Revista Mercado comumhttp://www.mercadocomum.com/site/artigo/detalhar/minas_gerais:_a_ilusao_do_deficit_zero_com_o_crescimento_da_divida_publica
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