UM ARQUITETO E OS ASSENTAMENTOS RURAIS
Sérgio Antunes de Freitas
APRESENTAÇÃO DESTA
2.ª EDIÇÃO
Ao final de minha vida laboral como Arquiteto e Urbanista no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
– INCRA, no qual trabalhei
por 40 anos e me aposentei, resolvi
registrar uma parte das minhas
experiências profissionais.
Isso foi feito ainda no calor de um ambiente sempre em ebulição, dada uma das atividades controversas atribuída ao Órgão:
a reforma agrária.
Some-se a isso o comportamento das pessoas geradoras
dos vetores de pressão
interna: políticos das mais diversas linhas de
pensamento, honestos ou desonestos, servidores públicos dedicados
ou negligentes, obedientes às leis ou obedientes aos chefes, assim como as
demandas do público,
legítimas ou falsas.
A maioria dos servidores públicos autênticos o são por vocação. Desejam
servir ao próximo
e, por extensão, mantém constante
preocupação com os problemas sociais,
o desenvolvimento do País, o futuro da Humanidade.
Assim, transcendem suas obrigações!
No meio desse
rodamoinho de estímulos e desestímulos, acabei
por deixar de tratar com mais
clareza alguns assuntos relevantes.
Um deles é o termo ocupação, usado para caracterizar os acampamentos dos
movimentos de trabalhadores rurais em busca de terras
para viverem.
O Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra – MST não invade!
Sempre ocupa terras improdutivas que já deveriam
ter sido desapropriadas e distribuídas aos
agricultores, por força
da Lei.
Tanto esses agricultores ocupam que, quando são instados
a desocuparem por força legal, deixam o local pacificamente, ordeiramente.
É uma pressão,
a fim de que o Governo cumpra com sua obrigação. O MST é o movimento social mais sério e competente de todos, com ótimos
resultados, seja como demandante dos assentamentos, seja como agente de produção,
após suas vitórias.
Mas existem outros,
inclusive espúrios. Em alguns casos, um endinheirado compra uma terra barata,
contrata pobres para se passarem por agricultores acampados e
passa a pressionar o Poder Público,
com vistas a uma desapropriação que lhe renda
várias vezes o que gastou, mediante, inclusive, propinas.
Depois, os falsos agricultores vendem a terra que recebem, pois não têm conhecimento nem meios para cultivá-las.
Felizmente, essa não é a regra, mas existem muitos outros problemas descritos ao longo dos capítulos.
Assim como essa informação, muitas outras relativas ao tema não são de conhecimento público em geral.
Desse modo, um dos objetivos do trabalho é passar por todas as áreas de conhecimento que influem no
sucesso ou insucesso nesse tipo de empreendimento.
ÍNDICE
1. Notas do Autor............................................................ 6
2. Introdução................................................................... 8
3. Propriedade................................................................. 11
4. Natureza...................................................................... 15
5. Densidade................................................................... 20
6. Conceito de Assentamento....................................... 25
7. A Falta de Planejamento Governamental................. 28
8. Constituições Brasileiras.......................................... 32
9. Mais um Pouco de Leis............................................. 40
10. Métodos...................................................................... 46
11. Obtenção de Terras................................................. 49
12. Estradas.................................................................... 52
13. Parcelamento............................................................. 57
14. Assentamento Tradicional....................................... 62
15. Opção ao Assentamento Tradicional..................... 69
16. Conclusão.................................................................. 74
17. Bibliografia................................................................. 76
18. Endereços Eletrônicos.............................................. 79
NOTAS DO AUTOR
NA PRIMEIRA EDIÇÃO
Este ensaio não se destina aos professores nem aos profissionais com
larga experiência, teórica ou
prática, no trato da organização dos espaços rurais, embora nele possam encontrar algum dado relevante para o
enriquecimento de seus cabedais de
informações ou mesmo algum caminho que os leve a novos campos de pesquisas ou em direção ao aprimoramento da admirável
arte de ensinar.
Destina-se, sim, aos jovens profissionais, especialmente aos pouquíssimos arquitetos que venham a se defrontar com
problemas pertinentes à área rural e não tenham ainda reunido
indicativos sobre como se deve planejar as intervenções
nas áreas extra-urbanas. Portanto, se trata de uma introdução à matéria.
Quando,
pela primeira vez, enfrentei um desafio profissional nessa área, me ressenti
da falta de orientações para levá-lo adiante.
Prometi a mim mesmo que, um
dia, registraria minha experiência, se viesse a ter, para ofertar a outros uma opção de caminho, a fim de não saírem,
assim como eu, praticamente do zero. Este
trabalho foi um segundo desafio, tão solitário como o primeiro, mas com uma diferença. No primeiro, não havia
informações. Agora, no segundo, são tantos os assuntos envolvidos, que alguns deles foram, intencionalmente, tratados superficialmente, para que a leitura não ficasse
cansativa.
Escrever um livro sobre esse assunto, por vezes, me pareceu temerário,
talvez prepotente, porém alguns
estímulos apareceram ao longo dos anos em que o propósito foi amadurecido.
Entre
eles, destaco uma epígrafe da parte 2 do artigo “A construção do Homem no jovem
Marx”, escrito por Augusto
Buonicore e exposto
na Internet:
“Em seus primeiros
estudos, feitos no Liceu de Triers, em 1835, Marx asseverou: ‘A diretiva principal que nos tem de
guiar na escolha de uma profissão é o bem da
humanidade e a nossa própria realização (...) A natureza do homem está estabelecida de tal modo que ele só pode
alcançar o seu aperfeiçoamento se agir para a
realização, para o bem dos
seus contemporâneos’.”
Não confirmei a veracidade da informação, como manda a boa postura
científica, pois a verdade
nela contida basta em si mesma. Essa posição confortável em relação às verdades fica endossada por uma
frase de Umberto Eco, no livro “Como
se faz uma tese”, a saber: “Em primeiro lugar, que as comunicações de massa sejam um fenômeno central de nosso tempo é algo tão óbvio que qualquer
um poderia ter dito. Não se exclui também que McLuhan o tenha dito (não averiguei, inventei a citação), mas não é
preciso apoiar-se na autoridade de quem
quer que seja para demonstrar
coisa tão evidente.” (Pág.
124)
Isso serve também para esclarecer que, em todo o texto, o fator
“evidência” é apoio de muitas
informações.
Ainda
ilustrando a razão de escrever, em artigo denominado “Não é o dinheiro, estúpido”
(assim mesmo, sem ponto final
ou de exclamação), publicado no jornal Folha de São Paulo, no dia 8 de fevereiro
de 2011, o publicitário Nizan Guanaes dá uma nova versão para a afirmação de
Marx: “Acumular conhecimentos é nobre e necessário, mas sem atitude,
sem personalidade, você, no fundo, não
será muito diferente
daquele personagem de Charles Chaplin
apertando parafusos numa planta industrial do século passado.”
As informações anteriores já anunciam que, escrever em forma de
crônica, foi uma alternativa a
escrever de forma científica, pois não seria honesto fazê-lo, sem ter o amparo de um curso de
pós-graduação, ou seja, sem a chancela da Academia.
Por outro lado, mais desonesto
seria a omissão, não escrevendo nada. Também,
diferentemente das obras científicas, as citações de outros autores
não têm o mesmo sentido,
ou seja, não se trata de ancoragens para as afirmações feitas. Assim como no teatro
os cenários servem
para estabelecer o ambiente do enredo, aqui também as citações visam
estabelecer o contexto
em que as asserções aparecem.
E não importa que a relevância do trabalho fique sujeita a dúvidas e a críticas,
pois essas consequências também são
construtivas.
Muitos trabalhos já foram escritos sobre assentamentos rurais, sob
diversas óticas, ideológicas,
políticas, sociológicas, econômicas etc. No caso, não se pretendeu repetir esses enfoques, embora,
em alguns momentos,
o texto perpasse por essas áreas de discussão.
O
objetivo é bem claro: tratar das informações que incidem sobre o processo de projetação dos espaços físicos nos assentamentos rurais.
Entretanto,
ao longo da pesquisa, ainda que expedita, levada a efeito para o imprescindível fichamento - como se diz do
registro de partes importantes das obras consultadas, ficou claro uma validação de que, até hoje, por ignorância ou por ambição,
o homem não respeita a terra que o acolhe.
A história da sociedade contemporânea é a história da destruição do nosso Planeta.
INTRODUÇÃO
“E só cem anos depois é que eu iria aprender
que aquela era a frota
portuguesa que descobria o Brasil!
Naquela hora não existia Brasil, mas sim a nossa terra,
por nós chamada Pindorama, — terra boa e grande onde nossa tribo e muitas
outras corriam, livres, acampando
aqui e ali, caçando, pescando, dançando,
guerreando... “
(Tibicuera, personagem de Erico Veríssimo)
Os animais irracionais vivem, basicamente, em busca por alimentos e
sexo, ou seja, atendem
a seus instintos
de sobrevivência e perpetuação da espécie. Ainda como
atitudes essenciais, lutam pelas suas defesas individuais, grupais e de seus territórios
consequentemente.
O
homem também, mas de forma mais racional e aprimorada ao longo de sua evolução.
A versão moderna da propriedade nada mais é do que o instinto
de demarcação do território
travestido de racionalidade.
Já
na visão antropocêntrica, com enfoque econômico, a terra é um meio de produção
indispensável, tanto no contexto rural como no contexto urbano.
No
mundo capitalista, o solo, assim como a mão-de-obra, tornou-se mercadoria e, seguindo seu objetivo perverso, tem
por primeira finalidade o lucro, em vez das necessidades humanas.
Seja
qual for a intenção, certo é que a terra sempre foi o cenário para conflitos entre indivíduos ou classes.
Confirmando
essa informação com um ditado popular, são três as barras que causam brigas entre os homens: barra de
ouro, barra de saia e barra de rio. Em outras palavras: dinheiro, mulher e terra.
A
história do Brasil é farta nos registros da luta pelo chão. Sobre a região nordeste,
por volta de 1600, afirma Nelson Werneck
Sodré, em seu livro Formação Histórica do Brasil: “A extensa
apropriação e a marginalização das áreas pastoris,
a ausência do poder público,
o ritmo vegetativo em que descambaram
aquelas áreas, leva à configuração de uma fisionomia particular, em que aparecem as questões de terra,
resolvidas pela violência, as questões de família,
conduzindo a conflitos
locais duradouros, e, finalmente, a um banditismo endêmico, pontilhado de
fanatismo em alguns casos.” (Pág. 125) Também
João de Abreu Capistrano, nos seus Capítulos de História Colonial & Os Caminhos Antigos e o Povoamento do
Brasil, referindo-se a uma época por volta
de 1700, afirmou: “Reinava respeito natural pela propriedade; ladrão era e ainda é hoje o mais afrontoso dos
epítetos; a vida humana não inspirava o mesmo
acatamento. Questões de terra, melindres de família, uma descortesia mesmo involuntária, coisas às vezes de insignificância inapreciável desfechavam em
sangue”. (Pág. 136)
Por conta de conquista de terras, nos dois primeiros séculos do Brasil,
o que se sabe é de inúmeras invasões
por franceses, holandeses, ingleses, expulsão
desses invasores, guerras
entre grupos rivais,
aprisionamento e matança
de
índios e desafetos, afundamento de navios carregados de pau-brasil,
sentenças de morte com detalhes
de crueldade.
Ao longo dos séculos de colonização, a violência grassava, assim como
hoje, embora em tons diferentes, de
norte ao sul do país, como nos conta Sérgio Buarque
de Holanda e outros, em História Geral da Civilização Brasileira – O Brasil Monárquico: “Não estranha, pois,
que na sociedade pastoril a violência tivesse sido norma imperante. Antes do êxito das charqueadas, o próprio processo de ocupação das terras e as
condições de manutenção da autoridade nos campos
e nas fronteiras baseavam-se na força das armas; quando
não eram as tropas portuguesas, eram os grupos de
guerreiros e saqueadores de gado que
asseguravam a posse da terra e a apropriação do gado. ‘Gaúchos’ e ‘contrabandistas’, no século XVIII,
representavam tipicamente os pioneiros da exploração do gado”. (Pág. 494)
Tratando de conflitos semelhantes, por questões de posses ou de
limites, José de Souza Martins, em A
Imigração e a Crise do Brasil, descreve um artigo, denominado “Facto Revoltante”, publicado no jornal “Correio
Paulistano”, em 5 de abril de 1883:
“No dia primeiro do corrente foi na localidade de São Caetano assaltado
o sítio do Sr. Dr. Paulo Hamelin,
por uma falange
de vagabundos que, sem
causa alguma justificativa, invadiu aquela propriedade, levando na frente desfraldada uma insígnia representada por
uma vara com um lenço de tabaco na
ponta: foi debaixo de tão significativo emblema que essa chusma dando pastas às iras que lhe acendia o álcool,
quebrou uma porteira, entupiu valos e demoliu uma casa levando
sua audácia ao ponto de intimar a um empregado
do sítio que se retirasse
quanto antes com sua família
da casa que ocupava, dando-
lhe disso conhecimento sem perda de tempo, a fim de continuar ela na sua obra de demolição. Pasma ver tão estupendo e
vandálico ataque a propriedade particular,
cometido em um subúrbio da Capital da província de São Paulo por uma horda de vadios, intitulando-se ‘povo
que exerce a sua soberania’”. (Pág. 95)
Sem juízo de valores, é fácil estabelecer uma ligação entre o episódio
citado e as atuais ocupações feitas pelo Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra – MST e outros movimentos sociais assemelhados.
Também em alguns casos, é fácil verificar que, a depender dos
interesses mais imediatos, a posse
da terra é transitória e mais destrutiva. Sobre a expansão aurífera no Brasil, diz Werneck: “A
mineração configura a desvalia da terra. Não
é a propriedade da terra que tem importância; só o ouro tem importância. Esgotado o veio, a terra em si não tem
valor, e o minerador passa adiante, em busca
de outra área. Não disputa um título de propriedade, mas um título de concessão para minerar. A valia da terra
vem com o declínio aurífero. Na fase ascensional, ela carece de sentido.” (Pág. 136)
A versão atual desse comportamento é constatada não apenas na
exploração mineral, como na
exploração madeireira, que também aconteceu no passado, mas em menor escala, pela inexistência de tratores, correntões,
motosserras. É esse o meio de
cultura no qual cabe aos Governos cultivar
os chamados assentamentos humanos. Meio esse em que
tanto os micróbios quanto os antibióticos são da
mesma espécie.
E, de modo complexo, os conflitos não se apresentam claros e com
soluções fáceis. A fronteira entre o que é público e o que é privado torna-se
nebulosa. A
ciência do direito, muitas vezes, se atropela, na tentativa do
deslinde, obtendo resultados opostos à sua obrigação.
E, no caos da situação
fundiária, as intervenções políticas, eivadas de interesses pessoais ou de grupos, tornam-se
plenipotenciárias, agravando, cada vez mais,
o já conturbado contexto social do país.
A reforma
agrária bem feita,
assim como outras
formas de intervenção, é técnica fundamental para a organização do espaço
físico, devendo almejar a produção e o bem-estar das famílias. E, ao contrário do que pregam alguns idealistas mais progressistas,
ela não é um projeto, pois o gerenciamento do solo, como um organismo
vivo, é uma atividade permanente.
Enfim,
toda a organização territorial no país merece uma atenção especial do Estado, pois os oito milhões e quinhentos
mil quilômetros quadrados de terras formam o maior patrimônio do povo brasileiro e, por isso, devem receber
tratamento compatível com essa importância.
Ademais, a presença do Estado, gerenciando a ocupação do solo, é um princípio fundamental para o
combate à violência urbana ou
rural.
A organização do espaço rural precisa partir
de um planejamento que contemple todas as suas facetas, econômicas, sociais, ecológicas, assim
como precisa de uma execução
cuidadosa e um acompanhamento constante, tendo sempre como referência
a boa técnica, em lugar do proselitismo radical, a favor ou contra as políticas oficiais, considerando as
conhecidas estatísticas que asseguram uma indesejável concentração de terras no país.
Por isso, antes de entrar na discussão do desenho dos assentamentos
rurais, é importante analisar
os cenários em que esses
ocorrem e, ainda,
deve-se ter uma noção
dos assuntos que neles interferem, como as leis, a natureza, o conceito de propriedade e o próprio
conceito do que vem a ser assentamento.
PROPRIEDADE
No mundo jurídico atual, a definição do que é propriedade tem muitas
versões, não apenas em razão da
mutação histórica dos conceitos, como das diferentes posições políticas de seus mentores. Pode-se dizer que um traço
comum entre as diversas definições
mais aceitas é de que a propriedade é o direito, dentro dos limites legais,
de usar, gozar e dispor de um bem, assim como de reivindicá- lo de quem injustamente o detenha.
De
acordo com De Plácido e Silva, em seu livro Vocabulário Jurídico, muito respeitado pelos seus pares: “Na
linguagem, em sentido comum, propriedade, sem
fugir ao sentido originário, é condição em que se encontra a coisa, que pertence,
em caráter próprio e exclusivo, a determinada pessoa”.
E
acrescenta: “Desse modo, o direito de propriedade, que se assegura em toda a sua plenitude, para que se possa seu titular dispor
da coisa livremente, fluindo- a a seu bel
prazer ou a alienando quando lhe aprouver, sofre as restrições advindas
do respeito a direitos alheios
ou fundadas no próprio interesse coletivo, em face
dos princípios jurídicos que transformam a propriedade numa função social,
com destino ligado ao bem-estar do próprio povo”.
De
acordo com a página Central Jurídica, na Internet, “Propriedade é o direito que a pessoa, física ou jurídica, tem,
dentro dos limites normativos, de usar, gozar
e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha; a
propriedade não é a soma desses atributos, ela
é direito que compreende o poder de agir diversamente em relação ao bem, usando,
gozando ou dispondo dele”.
Temos que, da mesma página, ao conceito de propriedade, correspondem os seguintes
atributos.
“Jus utendi, que é o direito
de usar a coisa, dentro
das restrições legais,
a fim de evitar o abuso de
direito, limitando-se, portanto, ao bem-estar da coletividade; o direito de usar da coisa é o de tirar
dela todos os serviços que ela pode prestar,
sem que haja modificação em sua substância”;
“Jus fruendi exterioriza-se
na percepção dos frutos e na utilização dos produtos da coisa; é o direito de gozar da coisa ou de
explorá-la economicamente;”
“Jus abutendi ou disponendi equivale
ao direito de dispor da coisa ou poder de aliená-la
a título oneroso (venda) ou gratuito (doação), abrangendo o poder de consumi-la e o poder de gravá-la
de ônus (penhor,
hipoteca, etc.) ou de submetê-
la ao serviço de outrem.”
Referenciado
por essas características, clarifica-se que a propriedade da terra não precisa ser, obrigatoriamente,
individual, assim como não precisa reunir, obrigatoriamente, os três
atributos.
A
primeira afirmação é reforçada pelo Artigo 3º do Estatuto da Terra, no qual o “Poder Público reconhece às entidades
privadas, nacionais ou estrangeiras, o direito
à propriedade da terra em condomínio, quer sob a forma de cooperativas quer como sociedades abertas constituídas na forma da legislação em vigor”.
A segunda
afirmação consta da atual Constituição, reconhecedora da legitimidade da simples concessão de uso.
O
jurista De Plácido e Silva também conceitua a concessão de uso, no caso da denominada concessão de terras:
“Assim se diz da concessão
feita pelo poder
público, consistente na transferência de uma área de terreno,
de domínio público,
a fim de sujeitá-la à colonização agrícola ou a outro fim industrial. E
essa transferência pode ser feita com
a cláusula de reversão ou sem ela”. A par de
tanta legislação, a noção de propriedade da terra continua
sendo conflituosa sob os mais diversos aspectos.
Em
um dos documentos mais emblemáticos do mundo moderno, o Manifesto Comunista, Marx e Engels já assinalavam
esse conflito, do ponto de vista ideológico:
“Horrorizai-vos porque queremos abolir a propriedade privada. Mas em vossa sociedade a propriedade privada
está abolida para nove décimos de seus membros“.
O mesmo Engels, no livro “A Origem da Família, da Propriedade Privada e
do Estado”, defende seu ponto de vista, mediante descrições históricas: “Os interesses mais vis - a baixa cobiça, a
brutal avidez de prazeres, a sórdida avareza,
o roubo egoísta da propriedade comum - inauguram a nova sociedade civilizada, a sociedade de classe; os
meios mais ultrajantes minam e perdem a velha sociedade sem classes das Gens: o furto, a violência, a perfídia e a traição.
E a nova sociedade, através
desses dois mil e quinhentos anos de sua existência,
não tem sido senão o desenvolvimento de uma pequena minoria às expensas de uma grande maioria explorada e
oprimida; e continua a sê-lo, hoje mais do que nunca”.
(Pág.32)
No
mesmo volume, o famoso filósofo sugere a gênese da propriedade privada: “Os atenienses, porém, deviam aprender, e
rapidamente, como, ao nascer a troca
entre os indivíduos e ao se transformarem os produtos em mercadorias, o produto vem a dominar o produtor. Com a
produção de mercadorias, surgiu o cultivo
individual da terra e, em seguida, a propriedade individual do solo”. (Pág.38)
E ainda: “Atribui-se a Rômulo a primeira divisão
de terra entre
indivíduos, à razão
de dois jugera para cada um (mais ou menos um hectare)”. (Pág.42)
Tratando ainda do mesmo autor e do
mesmo livro, há mais uma informação histórica
relevante para este capítulo: “Não vamos falar aqui de como se realizou
a reforma de Solon, no ano 594 antes
de nossa era. Solon iniciou a série das chamadas
revoluções políticas e o fez com um ataque à propriedade. Até hoje, todas as revoluções têm sido contra um tipo de propriedade e em favor de outro;
um tipo de propriedade não pode ser protegido sem que se lese outro.
Na grande Revolução Francesa, a propriedade feudal
foi sacrificada para que se salvasse a
propriedade burguesa; na revolução de Solon, a propriedade dos credores sofreu em proveito
da dos devedores: as dívidas
foram simplesmente declaradas nulas. Ignoramos os pormenores, mas Solon se gaba, em seus
poemas, de ter feito arrancar aos
campos hipotecados as marcas de dívida e de ter propiciado o repatriamento dos homens que,
endividados, foram vendidos como escravos ou
fugiram para o estrangeiro. Isso não podia ser feito senão por uma flagrante violação dos direitos de propriedade. E,
na realidade, desde a primeira até a última
dessas chamadas revoluções políticas, todas elas se fizeram em defesa da propriedade, de um tipo de propriedade, e se realizaram por meio do confisco dos gens (dito de outro modo: do roubo)
por outro tipo de propriedade. Tanto é assim que há dois mil e quinhentos anos não se tem podido manter a propriedade privada
senão com a violação dos direitos da propriedade.” (Pág.39)
A
ilustração do assunto com a obra de um autor avesso à propriedade privada pode parecer tendenciosa, mas o objetivo
é demonstrar o quão fundamental é o respeito à função social da terra, que,
em verdade, é um patrimônio de toda a humanidade.
O
professor de direito civil José Osório de Azevedo Júnior,
em artigo denominado "O grande e imperdoável erro do Judiciário e do Executivo
foi prestigiar um direito menor do que aqueles que foram
atropelados no cumprimento da ordem.", trata do caso conhecido
como Pinheirinho, referente
a uma decisão judicial de reintegração de posse sobre uma favela.
O título
antecipa a conclusão
do texto.
“Os direitos
dos credores da massa falida proprietária são meros direitos
patrimoniais. Eles têm fundamento em uma lei também menor,
uma lei ordinária, cuja aplicação não pode contrariar preceitos expressos na Constituição.
O principal
deles está inscrito
logo no art. 1º, III, que indica
a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da
República. Esse valor permeia toda a ordem jurídica
e obriga a todos os cidadãos, inclusive os chefes de Poderes.
As imagens mostram a agressão violenta
à dignidade daquelas pessoas. Outro princípio constitucional foi afrontado: o da função
social da propriedade. É verdade que a Constituição garante o direito de propriedade. Mas toda vez que o faz, estabelece a restrição: a
propriedade deve cumprir sua função social.”
Definitivamente, por mais que se determinem as leis e os costumes, a propriedade jamais
será absoluta em largos
períodos da história.
E
mesmo em períodos mais curtos, esse domínio pode não ser relevante, como assegura Werneck “É fácil verificar,
desde logo, que a propriedade da terra carece
de importância, na Colônia e na época. Não há identidade alguma na função que a terra desempenha, no Brasil do século XVI, com o que ela desempenha
na Europa daquele tempo. O que caracteriza a sua função, aqui é a ausência de posse anterior,
com todas as inevitáveis decorrências. Não funciona como propriedade imobiliária. Não impõe limites
ao emprego de capital ou de trabalho sem capital. De início,
pois, não exerce nenhuma influência nos preços
do que produz, nem da renda. Nessa fase, pois, não só a terra não constitui problema como carece de sentido
e de função, qualquer tenha sido a legislação que regule o apossamento. Por si só, nada representa. Vai começar a representar
alguma coisa, vai começar a ter uma função, a partir do momento em que for objeto
do trabalho”. (Pág. 69)
De qualquer modo, é importante para o desenho dos projetos de
assentamento, objeto principal deste
trabalho, a definição de como será tratada a propriedade, se individual ou coletiva, ou ainda mista,
possibilidades essas que nos conta Engels,
na obra citada anteriormente: “As leis do antigo País de Gales, escritas vários séculos antes da conquista inglesa,
o mais tardar no século XI, mostram- nos
ainda o cultivo da terra em comum por aldeias inteiras, embora apenas por exceção, como vestígio de um costume universal
anterior. Cada família tinha cinco acres
de terra para seu cultivo
particular; afora isso, cultivava-se um campo em comum
e a colheita resultante era repartida”. (Pág.46)
Em resumo, a forma da propriedade condiciona o parcelamento do solo e a localização e o dimensionamento das obras
de infraestrutura necessárias aos projetos de aglomerações humanas.
Por isso, deve-se
ter o melhor conhecimento possível
de como o tema é concebido na sociedade atual.
Segundo Caio Mário da Silva Pereira, em seu livro Instituições de
Direito Civil, “Na verdade, crescem
os processos expropriatórios, sujeitando-se a coisa à utilidade pública e aproximando-a do interesse social”. Isso
pode significar não apenas o fim de
latifúndios, mas o das propriedades individuais tradicionais, mesmo que produtivas.” (Pág. 70)
E,
pelo mesmo autor, estamos nos distanciando daqueles glosadores, assim chamados
os hermeneutas ou interpretadores da lei que “...tomando literalmente os textos, sem uma depuração das condições psicossociais que os
inspiraram, a seu turno construíram
uma teoria, que se condensou numa fórmula repetida pelos juristas em toda a Idade Média,
e que chegou ao nosso tempo: qui dominus
est soli dominus
est usque ad coleos est usque ad inferos – quem é dono do solo
é também dono até o céu e até o inferno. A fórmula é poética, mas não
exprime uma realidade econômica nem encerra uma verdade material.” (Pág. 78)
Na coletânea denominada
História Rural e Questão Agrária, Eduardo Magalhães Ribeiro,
no capítulo “Terra,
Fazenda e Propriedade na História do Brasil”, encerra: “Existem, portanto,
no correr da história, direitos parciais, complementares, restritos e negociados sobre a terra:
cada sociedade define
propriedade de acordo
com cultura, poder,
força política vigente.
O direito de propriedade da terra, em muitas épocas
em várias culturas, foi transitivo, parcial,
acordado com outros direitos complementares. É, portanto, completamente diferente do direito
pleno descrito para o campo brasileiro que generalizou-se nos finais do século XX, quando a terra passou a ser expressão da vontade do seu dono e equivalente de ativo financeiro.” (Pág. 14)
NATUREZA
“Já nos meados do século XIX Karl Marx escreveu profeticamente que a tendência do capital ia na direção de
destruir as duas fontes de sua riqueza e reprodução: a natureza e o trabalho.
É o que está ocorrendo. A capacidade de o capitalismo adaptar-se a qualquer
circunstância chegou ao fim.” Assim pensa Leonardo
Boff, segundo seu artigo “Crise terminal do capitalismo?” O teólogo já não é mais voz
tão isolada nesses nossos dias.
Muito
lentamente, a sociedade internacional vem se conscientizando sobre a importância da conservação dos recursos
naturais do planeta. Em qualquer estudo atual,
como muitos levados
a efeito pela Organização das Nações Unidas
– ONU, por exemplo, há informações dando conta de que a Terra já não suporta
os bilhões de seres humanos que a ocupam. Uns dizem que um quarto de sua cobertura
vegetal original foi devastada com a consequente extinção de diversos
tipos de vidas vegetais e animais, algumas,
provavelmente, nunca conhecidas e registradas nos anais científicos.
Outros
afirmam que metade das terras passíveis de cultivo agropecuário já foi ocupada. E, mesmo assim, a fome ainda
horroriza aos mais conscientes. Claro, há
aspectos econômicos e de injustiça social para a formação desse cenário, mas os efeitos da equação do crescimento
populacional versus a produção de alimentos
têm se mostrado muito mais coerentes com as preocupações de Malthus do que com as dos visionários que
julgam poder o homem colonizar outros planetas
em curto espaço
de tempo, para resolver o problema do território limitado.
“Não respeitamos a ciência como deveríamos”, diz James Cameron, autor
do filme Avatar, lamentando “que a
sociedade só se importe com a ciência quando
ela avança em campos do seu interesse, como as novas tecnologias, mas
não faz sua parte quando o assunto
é preservar o planeta.”
A destruição da natureza no Brasil está registrada nos livros, seja com
essa intenção objetivamente, seja
indiretamente, até mesmo mediante a análise de
mapas que mostram o avanço das estradas, das cidades, das fazendas, em todas as direções do território, com maior
ou menor intensidade, a depender do momento histórico.
A
maioria citadina, formadora da opinião pública, afora as praias turísticas, não vive a natureza e, por isso, não vê o
desaparecimento do ambiente original. Poucos
notaram, só na segunda metade do século passado, o sumiço das florestas que beiravam as estradas do
norte do estado de São Paulo, o cerrado que seguia
de lá para Brasília, as florestas pré-amazônicas que levavam ao Mato Grosso e Rondônia, chegando até a
Amazônia, também atualmente em rápido processo de extinção.
Poucos percebem que a compra de um simples guarda-roupa de madeira oriunda de árvore não plantada, em Belo Horizonte, ou em qualquer
outra cidade, pode estar concorrendo para a devastação
da floresta amazônica. Há duzentos anos, isso seria irrelevante, mas, hoje, chega a ser condenável.
José
Fernando Domingues Carneiro nos dá um dos exemplos de ocupação destruidora, desde o passado,
com este parágrafo do livro Imigração e
Colonização no Brasil: “É que, nem no Rio Grande do Sul nem em Santa Catarina,
a imigração invadiu
as terras de campo. Essas, à chegada
dos primeiros imigrantes não-lusitanos, já estavam
ocupadas e divididas
em estâncias, onde se criava o
gado. E modificadas até no seu aspecto físico pela ocupação pastoril. A presença do gado e a ação do homem tinham
alterado consideràvelmente aquela paisagem que Pero Lopes em 1531 descrevera como uma
terra de pastagens altas, cobrindo em alguns pontos um homem em pé”. (Pág. 39)
Ainda,
tratando de migrações, o referido autor conta sobre um movimento de pessoas, que chamou sua atenção: ”Êsse
deslocamento de populações do Rio Grande
para o oeste catarinense não tem paralelo com cousa alguma que se tenha dado no Brasil. Não representou um
exodo motivado por um cataclisma, semelhante
àquele que levou tantos cearenses a abandonarem o seu estado, forçados pelas sêcas. Não representou
também um exodo motivado por um ElDorado como a descoberta das Minas Gerais
determinou no século
XVIII. Não foi um rush para explorar uma indústria
extrativa, rendosa no momento, como aquêle que levou os nordestinos, sobretudo
os cearenses a ocuparem até terras da Bolívia, criando para nós o Território
do Acre. Nem um rush predatório como aquêle
que atualmente se processa em direção ao norte do Paraná, brilhante, sem dúvida alguma, mas cuja prosperidade
será de curta duração. De meio século,
talvez. Já as florestas ali estão completamente arrasadas. O regime hidrológico completamente alterado. Para a
obtenção da água há necessidade de furar poços e furar cada vez mais fundo.” (Pág.53)
Carneiro também conta que “O grande contraste a referir numa reunião de geógrafos é que em Santa Catarina o
imigrante soube poupar a mata e lutar contra a erosão. Foi talvez o único ponto do Brasil onde a despeito do povoamento,
êsse fenômeno de conservação simultânea do solo e da mata se vem registrando. Porque no Rio Grande do
Sul, apesar do enorme progresso e do
rendimento econômico que os colonos souberam retirar do solo, êles não souberam
conservá-lo. Devastaram-no quase tanto quanto as populações lusobrasileiras.” (Pág. 58)
Neste pequeno mosaico de história, José de Souza Martins acrescenta
outro episódio ocorrido nos núcleos
coloniais do começo do século XX, onde hoje se
encontra o chamado ABC, no Estado de São Paulo. Ele nos traz a estes momentos
atuais, em que a televisão
mostra inúmeras reportagens de alagamento de cidades
em épocas de chuva, tanto no Brasil como em outros países: “Mesmo nos rios maiores, como o Tamanduateí, o regime
das águas oscilava muito de estação
para estação. No tempo das chuvas, devido ao leito pouco profundo, o rio extravazava inundando uma grande parte das várzeas. Ao que parece
devido à devastação das matas à sua margem
(o que intensificava a evaporação), o volume das águas diminuía
muito no tempo da seca, desde a fazenda
até a ponte do Fonseca, na cidade, impedindo mesmo o seu uso pelos moradores
da estrada da Mooca.” (Pág. 107)
No mesmo livro, há outro testemunho sobre a devastação costumeira das ocupações humanas: “O funcionário que fez
o levantamento da Fazenda São Caetano,
em 1874, notara que existiam ali ‘bastantes matas ainda e não de somenos qualidade, sendo pena que os
vizinhos daquelas matas as estejam devastando com continuadas queimas e cortes,
para fazerem lenha unicamente’.
Três anos depois, o engenheiro do núcleo colonial ainda observava que
esse continha ‘algumas matas’ e que
existiam ‘alguns intrusos que se aplicam na tiragem
da madeira”. (Pág. 102)
Mais
antigo ainda é o relato do Padre Antônio Vieira, que consta do livro de Werneck, tratando do Maranhão, no fim do século XVII, em uma de suas famosas cartas: “Na Ilha do Maranhão, responde
muito mal a terra com o pão natural daquelas
partes, que é a mandioca, e no Pará, por serem as terras todas alagadas, são tão poucos os lugares
capazes da planta da dita mandioca que é necessário aos moradores mudarem muitas vêzes suas
casas e fazendas, deixando perdidas e
despovoadas as que tinham, e ir fabricar outras de nôvo, dali a muitas léguas, com excessivos trabalhos e despesa. As
madeiras, com o fabrico de navios, a
destruição das roças, em que se derrubam e queimam, já são menos e muito distantes. As canas-de-açúcar não se plantam
uma só vez, como no Brasil, mas quase
é necessário que se vão replantando todos os anos. As terras capazes de tabaco também se vão já buscar muito
longe. O comer ordinário é caça e
pescado, e a caça, sendo antigamente tanta, que quase se metia pelas casas, hoje pela continuação com que se tem batido
os matos, está quase extinta. E no
peixe se tem experimentado quase o mesmo, sendo no princípio infinito. E a razão de tudo é não serem as terras da
América tão criadoras, como também
mostrou a experiência no Brasil, para onde se carrega de Portugal tanto
peixe sêco; ajudando
muito no Maranhão
a esterilizar os mares e rios os modos de pescar, que se usam
sem nenhuma providência, com que é mais o que destroem,
que o que se aproveita, e se perde totalmente a criação, e como
a gente cresce, e o sustento diminui, é fôrça que se padeça muito.” (Pág.138)
A observação dos problemas ecológicos, cada vez mais graves, leva os estudiosos a buscar outras trincheiras que
permitam reduzir os problemas, ampliando a teoria, mediante
a ramificação das matérias antigas.
Assim, surgiu,
recentemente, o conceito
de história ambiental.
Marcos
Lobato Martins, no livro História e Meio Ambiente, assegura: “Convém ressaltar que a história ambiental pode
ajudar a sociedade a repensar seu protagonismo,
marcadamente antropocêntrico. Entre nós predomina a ideia da natureza como palco silencioso e estático
da história, porque o dinamismo esta depositado exclusivamente na esfera da ação humana.
Essa ideia, entretanto, é falsa e perigosa. O
planeta em que vivemos não é tranqüilo nem estático... Não é prudente, portanto,
subestimar as forças
da natureza.” (Pág. 29)
Com
imagens do satélite Landsat, sendo a maioria de 2002, o Ministério da Agricultura – MMA patrocinou um estudo
sobre a cobertura vegetal brasileira, cujas
porcentagens das áreas antrópicas, ou seja, já alteradas cabalmente pelo homem, segue logo mais abaixo. Como se já
não bastasse a gravidade dos números
apresentados nesse estudo, há uma ressalva inicial que empioram o significado desses valores.
“É importante ressaltar também que, por
determinação do MMA, áreas onde houvesse
predomínio de vegetação nativa, ainda que com algum grau de uso antrópico, deveriam ser contabilizadas e
mapeadas no rol das tipologias de vegetação
nativa. Por outro lado, áreas onde houve conversão em pastagens plantadas, cultivos agrícolas, reflorestamentos, mineração, urbanização e outros usos semelhantes em que a vegetação nativa
deixasse de ser predominante,
deveriam ser contabilizadas e discriminadas como áreas antrópicas. Outra premissa importante, determinada pelo MMA, é de que a vegetação secundária, em estágio avançado
de desenvolvimento, deveria
ser contabilizada e mapeada como
vegetação nativa.”
Região
(Bioma) Alteração do Bioma
%
Amazônia 9,50
Pantanal 11,54
Cerrado 38,98
Caatinga 36,28
Mata Atlântica 70,95
Pampa 48,70
Esses pouquíssimos exemplos servem para ilustrar um fato: no Brasil e
no mundo, a humanidade vive uma espécie
de época de obscurantismo, em relação à sua responsabilidade perante a
natureza. E, assim como na Idade Média, a contestação a esse obscurantismo só pode vir dele próprio.
Marcel Mazoyer e Laurence Roudart, escritores do livro Histórias das Agriculturas no Mundo: Do Neolítico à Crise
Contemporânea, apresentam uma espécie de defesa
para o comportamento agropecuário em nossa sociedade: “Se o homem abandonasse todos os ecossistemas
cultivados do planeta, estes retornariam rapidamente a um estado de natureza próximo
daquele no qual ele se encontrava há 10 mil anos. As plantas cultivadas e os animais
domésticos seriam encobertos por uma vegetação e por uma fauna selvagem
infinitamente mais poderosas
que hoje. Os nove décimos da
população pereceria, pois, nesse jardim do Édem, a simples predação (caça, pesca e colheita) certamente não
permitiria alimentar mais de meio
milhão de homens. Se tal ‘desastre ecológico’ acontecesse, a indústria – que não está à altura de
sintetizar em grande escala a alimentação da humanidade e não o fará tão cedo – seria um recurso paupérrimo. Tanto para alimentar vinte milhões de homens como
para alimentar cinco, não há outra via senão
continuar a cultivar o planeta multiplicando as plantas e os animais domésticos, dominando a
vegetação e a fauna selvagem.” (Pág.
41)
Essa opinião é típica de ruralistas não muito progressistas, uma opinião tendendo
a extremo, longe do ponto de equilíbrio que devemos procurar para a
utilização correta da Terra. Mesmo em face de a obra ser excelente, nos primeiros períodos
do parágrafo citado, há uma afirmação absurda, e não há outro
qualificador, mesmo se tratando de
uma hipótese remotíssima. Jamais, nos ecossistemas cultivados, o homem conseguirá a ressurreição das espécies animais
e vegetais definitivamente extintas. Deixemos como
esperança uma ciência muitíssimo mais
avançada que a atual, especialmente no caso de reconstruções de vidas, mediante
pesquisas com clonagem, DNA, células-tronco etc.
Mas uma ciência atualíssima já contraria a impressão que os autores têm
sobre a indústria. Em reportagem intitulada “Hambúrguer de células-tronco ficará
pronto em outubro”, é informado que as pesquisas já caminham na direção
de uma produção artificial de carne maior que
a da pecuária tradicional.
Nos últimos períodos do parágrafo em apreço, fica a impressão de que os autores
sugerem ao homem submeter a natureza de forma cruel,
inconsequente, irresponsável,
dizendo não haver outro caminho para alimentar a humanidade. Mas há! Desde que os seres humanos,
em sua maioria, deixem de ser inconsequentes.
DENSIDADE
O conceito de densidade humana já é largamente usado na ciência
urbanística, tanto na teoria como nas aplicações administrativas de muitas
cidades com bom planejamento.
Como exemplo,
na Holanda, “a densidade urbana
é um parâmetro importante na prática
do planejamento físico e territorial. O fato de ser um país pequeno, altamente
urbanizado e possuindo
uma das mais altas densidades
do mundo –
452 habitantes/ha, e onde o parcelamento e a ocupação
do solo são extremamente regulados, faz com que o Governo
dê atenção especial
ao planejamento físico territorial. Há inclusive um ministério para essa atividade. Em projetos de
expansão urbana e áreas residenciais, utiliza-se o indicador de densidade urbana através da medida habitações/ha ou unidades residenciais/ha. A implantação de equipamentos e serviços públicos,
tais como escola,
supermercado, ponto de ônibus etc. leva sempre
em consideração o número total
de habitações em seu raio de influência.”, conforme nos conta Cláudio
Acioly, em seu livro Densidade
Urbana: Um Instrumento de Planejamento e Gestão Urbana, disponível na Internet.
(Pág. 50)
Referindo-se
a um inventário feito em 12 assentamentos na cidade do México, Acyoli acrescenta: “O estudo em questão elabora
critérios para avaliar
a performance dos
assentamentos estudados. Os autores partem do princípio de que densidades aceitáveis e desejáveis em
áreas residenciais devem se situar entre 300 e 600 habitantes
/ha.” (Pág. 55)
E, mais adiante, no mesmo trabalho: “A relação entre a densidade e os
custos de infra-estrutura parece ser ainda mais complexa. Ao estudar Brasília,
Brandão argumenta que o custo
per capita das redes de infra-estrutura urbana decresce espetacularmente à medida que a densidade populacional aumenta
de 50 para 200 habitantes/ha,
portanto uma relação inversa entre densidade e custos infra- estruturais. De 200 para 300
habitantes/ha, os custos per capita diminuem, mas não tão significativamente, e tendem a manter-se nos patamares
mais baixos para densidades de 300 a 600 hab/ha.
Esse comportamento também é confirmado por Mascaró, em seu estudo
sobre a relação densidades-custo das redes de infra-estrutura urbana.”
(Pág. 58) Juan José Mascaró
e Lucia Mascaró,
em artigo publicado na revista eletrônica Vitruvius, denominado
Densidades, Ambiência e
Infraestrutura Urbana, reforçam o que foi escrito no parágrafo anterior: “Os estudos que analisam o
espalhamento urbano no Brasil trabalham com a hipótese de uma densidade
mais econômica. Entre 1979 e 1996 desenvolvi estudos para as cidades de
porte médio e para Porto Alegre, tendo como
objetivo principal estimar quanto podiam se adensar sem aumentar a demanda para nova infraestrutura.
Considerando o padrão de moradia mais econômico,
a densidade mais adequada variou entre 300 e 350 pessoas por hectare,
sendo o mínimo de 40 pessoas por hectare.”
É
importante ressaltar que a densidade urbana é restrita. Não reflete a real necessidade de quanto espaço,
urbano ou não, um indivíduo necessita para sobreviver.
Se nos ativermos exclusivamente a esse espaço
urbano, podemos concluir
que, se a densidade for de
200 habitantes por hectare, a cada pessoa corresponde 50 metros quadrados.
Entretanto,
se essa pessoa consome 200 gramas de carne bovina por dia, a ela vai corresponder um espaço necessário à criação de bovinos.
Supondo-se
que um boi é morto com 15 arrobas e rende 115 quilos de carne e miúdos,
ele serve a 575
pessoas por dia, ou seja,
a 1,5 pessoas por ano.
Como
um boi precisa de um hectare de pasto, na pecuária extensiva tradicional de nosso país, o habitante urbano
carnívoro necessitará de mais 6.666 metros quadrados
para sua sobrevivência. Não vamos nos alongar acerca do espaço necessário para a criação
de aves, suínos,
pescados e outros,
nem de plantações de arroz, hortaliças, trigo, soja etc., mas é certo
que os indivíduos dependem de espaços distantes
dos que habitam,
inclusive quando se pensa em purificação
natural da água, oxigenação do ar e tantos outros aspectos que preocupam os ambientalistas.
O artigo “Problemas sérios do planeta
persistem, alerta relatório
da ONU” destaca que “O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) afirma que as maiores ameaças ao planeta,
como as mudanças climáticas, a taxa
de extinção das espécies, e o desafio de alimentar a crescente população, estão entre os muitos que permanecem sem
solução e colocam a humanidade em risco.”
“O alerta está no Global Environment Outlook:
meio ambiente para o desenvolvimento (GEO-4),” que afirma ser a
população mundial tão numerosa que “a
quantidade de recursos necessários para mantê-la excede os recursos disponíveis... a 'pegada' da humanidade
[ou seja, sua demanda ambiental] é de 21,9
hectares por pessoa, enquanto a capacidade biológica da Terra é, em média,
somente 15,7 hectares
por pessoa...".
Para
se ter a verdadeira densidade demográfica, não basta, inclusive, dividir o número de habitantes de uma nação pela
área de seu território, pois, em nosso mundo globalizado, o consumo de um país, muitas vezes,
depende dos espaços
em outros.
Portanto, a afirmação de que somos muitos, mas ocupamos poucos
espaços, em razão
da urbanização, não corresponde à verdade.
De
certa forma, a densidade sempre foi utilizada de forma empírica, leiga ou interesseira. José de Souza Martins, tratando
das imigrações no Brasil, nos dá a sua impressão: “O estado, ao financiar a imigração e a localização de trabalhadores, não só ‘socializava’ a força de trabalho, para constituir um mercado
de oferta que dela separasse a pessoa do trabalhador, como entendia que a elevação
da densidade demográfica, por esse meio, produziria um trabalhador
que se oferecesse à grande lavoura nas fases de vacância.” (Pág. 55)
Também Engels narra os efeitos do crescimento populacional em relação à limitação das terras: “De acordo com este
ponto de vista, os germanos, nos territórios
que ocupavam ao tempo dos romanos, e no que depois tomaram aos romanos,
não estavam estabelecidos em povoados, e sim em grandes comunidades familiares que compreendiam muitas gerações, e onde cultivavam uma extensão de terra correspondente ao número dos seus membros,
deixando incultas as terras que serviam de limites com as propriedades vizinhas. O trecho
de Tácito referente às trocas de solo cultivado, portanto, deveria ser
entendido no sentido agronômico, já
que a comunidade lavrava a cada ano certa extensão de terra e deixava em alqueive ou até completamente baldias as terras
cultivadas no ano anterior.
Dada a pouca densidade da população, havia sempre terra sobrando, de modo que as disputas quanto a elas se tornavam
desnecessárias. Só depois de
séculos, a comunidade se veio a dissolver, quando o número dos seus membros cresceu tanto que já não era
possível o trabalho comum nas condições
de produção da época; os campos e os prados, até então comuns, foram divididos, pela forma já conhecida (a princípio temporária e depois definitivamente), entre as famílias
individuais que se iam formando, ao passo que continuavam
sendo de aproveitamento comum as florestas, os pastos e as águas”.
A densidade populacional no Brasil também
vem crescendo de forma acelerada, considerando o pequeno tempo, na escala da história, de apenas
meio milênio. Capistrano informa:
“Três séculos depois do descobrimento os habitantes do Brasil exprimiam-se por sete algarismos. Repartidos na
superfície reclamada como sua pela
metrópole, tocavam dois ou três quilômetros quadrados a cada indivíduo.” (Pág. 207)
Hoje, duzentos anos depois, nos aproximamos de 30 indivíduos por
quilômetro quadrado, exprimindo-se a
quantidade da população em nove algarismos: mais de duzentos milhões de
habitantes.
Na
escala social, a célula, ou seja, a família, a depender de seu grau de educação, preocupa-se com a densidade de
seu lar, daí uma das razões para o chamado
planejamento familiar. Não é necessário apontar com detalhes as diferenças de conforto entre uma família
com casal e dois filhos, morando em uma unidade
residencial de duzentos
metros quadrados, e uma mulher
com oito filhos,
morando em um barraco de periferia de trinta metros
quadrados. Também nas cidades, é clara a evidência de que,
quanto maior a densidade, mais barata a
infraestrutura física, até determinado limite, como já foi apresentada, mas também em maior quantidade e mais
agressivas são as patologias sociais. Dificuldades
no estacionamento de veículos, engarrafamentos, violências de todas as espécies
atestam o que, a muitos,
é apenas impressão.
Guardadas as proporções, as densidades nacionais e internacional ainda
não mereceram a preocupação dos
governos, assim como, em pequenos grupos sociais, o planejamento
familiar vem adquirindo importância.
Não é difícil encontrar indivíduos, com boa formação educacional, que
julgam o problema irrelevante, principalmente em escala mundial.
Outros
reconhecem que a Terra já não dá suporte para a atual quantidade de pessoas, mas com a educação ou com outras
formas de sistemas, que não o capitalista, tudo será resolvido.
Os
mais preocupados acreditam que o crescimento populacional é forçado, por exemplo,
devido ao desenvolvimento da medicina, que prolonga a vida e diminui a mortalidade infantil. E isso é fator
perigoso para o futuro de nossa espécie, se
não houver controle.
Há
os apocalípticos, fanáticos religiosos, que juram estar o fim do mundo bem próximo, ou que devemos apenas seguir o
mandamento cristão, “crescei e multiplicai-vos”, que os céus resolverão o caso.
Em
artigo intitulado “O padrão Steve Jobs é predador”, José Pio Martins cita o economista Eduardo Gianetti, informando
que esse, em entrevista, se mostrou “indignado com a incapacidade da economia de mercado (da qual ele e eu somos fãs) em levar em conta o custo ambiental
de nossas escolhas de produção e consumo. Ele fala da ‘corrida armamentista do consumo’, que, com mais bilhões de chineses e indianos ingressando no
mercado consumidor, vai explodir os recursos do planeta.
A Terra não vai aguentar.”
Independentemente da opinião, todos hão de concordar que o uso racional
dos recursos naturais é desejável
sob qualquer aspecto.
E
isso pressupõe, logicamente, a organização dos espaços de exploração dos limitados
recursos naturais do planeta.
Luiz
César Queiroz Ribeiro, em Reforma Urbana e Gestão Democrática, afirma que: “a sobrevivência das populações na
cidade depende fundamentalmente de um bem social cujo acesso é regulado pelo exercício do ‘direito de propriedade’. Trata-se do solo urbano, que não se
restringe a um pedaço de terra, mas a um conjunto de equipamentos (infraestrutura) e serviços que lhe são próximos, física
e socialmente.” (Pág. 75)
Na mesma linha de raciocínio,
mas extrapolando os conceitos, podemos chegar
à questão: Qual será a densidade limite de sobrevivência da espécie
humana? Segundo o relatório sobre a Situação
da População Mundial
2011, publicado em 26
de outubro de 2011, pelo Fundo de População das Nações Unidas - UNFPA, nesse mesmo mês foi atingida
a marca de sete bilhões de habitantes na terra.
O
professor Edward Wilson, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, escreveu um artigo tratando dos impactos
do crescimento populacional sobre o meio ambiente, afirmando que dez bilhões é o “limite
a que deveríamos nos ater” para
efeito de ocupação humana. Não foi possível averiguar quais os estudos que o levaram
a essa afirmação, mas em outra, mais simpática para os estudiosos preocupados exclusivamente com os problemas
sociais, diz o professor que o consumo
crescente é a principal ameaça
para o crescimento da população.
Por
outro lado, ele lembra que “deveríamos estar dando igual atenção à parte viva do meio ambiente - os ecossistemas que sobrevivem e a grande
maioria das espécies, que têm milhões
de anos e estão em pleno processo
de erosão.” E que deveríamos “separar mais regiões em que
a natureza, o resto dos seres vivos possam
ser protegidos, enquanto resolvemos os problemas da nossa espécie e nos ajustamos antes de destruir toda a Terra.”
Também
o pensador Eugênio Giovenardi, em artigo denominado “População e Fome”, publicado em sua página eletrônica,
opina: “Em nome da dignidade humana,
para estabelecer um equilíbrio do crescimento demográfico, impõe-se medida racional muito mais efetiva do que
uma projeção estatística preguiçosa para
o ano 2100. A limitação do crescimento das populações do planeta se dá por fenômenos naturais
e doenças como pestes, epidemias, secas, inundações, tornados, tsunamis, terremotos, erupções
vulcânicas. Mas talvez não seja razoável
esperar por eles ou estimulá-los com falsas ideias de progresso, de crescimento econômico, desenvolvimento tecnológico, metropolização de cidades, desertificação gradativa de
imensas regiões, devastação de florestas. Há outros
meios sensatos e racionais.
O
planejamento demográfico, estendido a todas as nações do mundo, em nome da sobrevivência das populações
existentes no planeta, é medida necessária e
salutar. Os efeitos não serão imediatos, pois há obstáculos culturais,
tabus e conceitos religiosos a
superar. Mas a reprodução vegetativa, ou crescimento zero da população, é desejável do ponto de vista humano e
necessária para o equilíbrio ecológico
e ambiental que assegure a biodiversidade bela e espetacular do planeta. Só temos um
planeta disponível para ser desfrutado entre todos os seres vivos.”
Em
suma, o estabelecimento de densidades ideais, se já não é muito fácil nas áreas urbanas, na área rural é muito mais
complexo, pois deve considerar duas coordenadas: a geográfica, com suas diversas
faces políticas, como as características das ocupações existentes, inclusive análise de mercados, migrações etc. e físicas, como a qualidade
dos solos, vegetação, clima etc. A outra
coordenada é a do tempo, porque tanto a natureza como as atividades humanas
são muito dinâmicas e necessitam de constante monitoramento, o que confirma a impressão
de que a reforma agrária
é uma atividade e não um projeto,
como erradamente se diz nos bastidores de governo, com começo, meio e
fim.
CONCEITO DE ASSENTAMENTO
Após expurgar uma fortaleza em Pernambuco deixada pelo fidalgo francês, Barão de Saint Blancard, e guarnecida por
quarenta soldados, prosseguiam as preocupações
de Portugal em relação à posse
da Colônia brasileira.
E
assim escreve Capistrano sobre o fato: “A 28 de setembro
de 1532 el-rei
estava ‘considerando com
quanto trabalho se lançaria a gente que a povoasse depois de estar assentada na terra e ter nela
feitas algumas forças’, como escrevia a Martin
Afonso de Sousa numa carta em que primeiro desponta a ideia de dividir o Brasil
em capitanias para doá-las
a certas pessoas.” (Pág. 250)
Talvez
essa tenha sido a primeira vez que o verbo assentar tenha sido usado oficialmente na história do Brasil.
A
palavra assentamento, derivada do verbo assentar, atualmente é usada em diversas
áreas do conhecimento humano, como a jurídica, a contábil, a ecológica,
a urbanística. Quando se trata de reforma agrária ou colonização, então,
seu uso é corriqueiro.
Entretanto,
referindo-se a esses últimos temas, não há ainda uma conceituação precisa
e definitiva de seu sentido.
Em português, o termo assentamento, entre vários significados, é esclarecido no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque
de Holanda Ferreira,
como “Colocar ou dispor de tal modo que fique seguro”.
Poder-se-ia
dar uma interpretação simbólica para o verbete, pois a segurança que pressupõe pode ser não apenas uma segurança material
ou física, mas uma segurança social e ambiental. Contudo,
nesse caso, os filólogos se reportaram apenas à colocação de algo material
muito provavelmente. No Dicionário Houaiss, o termo já é conceituado como
“núcleo de povoamento (Ex.: a. de colonos),
núcleo de povoamento constituído por camponeses ou trabalhadores rurais,
ato ou efeito de se realizar a fixação do camponês a essas terras”.
Em inglês, o vocábulo “settlement” é usado para se dizer de uma
comunidade pequena. Também
é encontrável a combinação “human
settlement, a permanent community where people live”. Em tradução não oficial, comunidade permanente onde vivem pessoas.
Apenas para ilustração, na cultura inglesa,
há também uma referência ao “settlement movement”, com descrições encontráveis em páginas eletrônicas da Rede Mundial
de Computadores - Internet.
O
movimento de assentamento foi um movimento social reformista, tendo seu auge nos anos 20, na Inglaterra e nos EUA,
com o objetivo de fazer com que as pessoas
ricas e pobres da sociedade vivessem mais próximas umas das outras em uma comunidade interdependente. O
objetivo principal do estabelecimento de "casas de assentamento" em áreas urbanas
pobres, nas quais "trabalhadores de assentamento" e voluntários da classe média iam viver,
era o de compartilhar conhecimento e cultura, além de aliviar
a pobreza dos mais carentes,
especialmente idosos e órfãos.
Esse movimento
de assentamentos começou
em Londres no meio do Século
XIX. As “casas de assentamento”, frequentemente, ofereciam abrigo, alimentos e educação, tanto básica como superior, providenciada por caridade de doadores ricos e por professores que dedicavam um pouco de seu tempo aos necessitados, sempre de forma voluntária.
Como se pode deduzir, a palavra assentamento carrega uma forte conotação de assistência
social, há décadas, bem como um sentido de múltiplas ações para atender
aos mais humildes.
No
livro “Admirável Mundo Atual”, de Cristovam Buarque, assinalado como um “Dicionário pessoal dos horrores
e esperanças do mundo globalizado”, a palavra recebeu uma interpretação mais
ideológica: “passou a significar os locais para onde são transferidos os excluídos que invadiram locais próximos
aos bairros onde vivem ou as terras
que possuem os incluídos. Os assentamentos foram a solução encontrada para frear a migração de pobres do campo para as cidades,
ou para retirar os pobres da proximidade dos bairros dos ricos e da
classe média.” (Pág. 44)
Segundo o Diccionario de la Lengua Española,
da Real Academia Española, na Internet, “asentamiento” significa “Instalación provisional, por la autoridad
gubernativa, de colonos o cultivadores en tierras destinadas a
expropiarse”. É razoável supor que essa significação espanhola
é uma das versões mais autênticas
do termo usado em muitas línguas, para se referir, e aqui é proposta uma conceituação, ao processo de se tomar
um ou mais seres vivos e instalá- los
em um espaço que propicie seu desenvolvimento, por seus próprios meios, depois
de um período de adaptação.
Deduz-se que o assentamento, portanto,
pode ser com homens, animais
irracionais ou vegetais, de acordo com o seu uso nas mais diversas
terminologias técnicas. No caso de seres humanos,
o assentamento pode ser urbano
ou rural, já sob a ótica do planejamento regional.
No
caso de assentamentos rurais, pode-se ter duas modalidades: colonização ou reforma agrária.
Colonização é palavra usada para apontar
os assentamentos em áreas despovoadas ou pouco povoadas, como, por
exemplo, as chamadas fronteiras agrícolas.
Reforma
agrária, como o próprio nome sugere, é a modificação de uma área já ocupada
de alguma forma,
seja mediante uma posse real ou apenas um domínio
legal.
Portanto,
quando famílias são remanejadas para uma área rural, para fins de habitação, trata-se de um assentamento de
fato, assim nomeado pela mais legítima semântica, independentemente da organização espacial do território, da organização social de seus beneficiários, das motivações ideológicas que resultaram nas
ações.
Outro
aspecto que caracteriza o assentamento é o deslocamento das pessoas. No caso de migrações espontâneas, as etapas e decisões dos indivíduos acontecem de forma paulatina e por força
de seus desejos
unicamente.
Já
nas migrações dirigidas, há um forte condicionante de terceiros, geralmente governos, que induzem essa movimentação. O
sentido do termo assentamento apresenta, nesse
caso, uma ruptura
na vida dos assentados, para a modificação de seus destinos.
Capistrano
(Pág. 202) fala de duas correntes de povoadores: espontânea e voluntária, esta última determinada por ação governativa e ilustra: “No governo
de Diogo da Costa Machado
chegaram a São Luiz algumas
centenas de açorianos, engajados para povoadores. Nada encontraram feito para recebê-los, e padeceram as maiores privações
e misérias. A imigração, iniciada
sob fagueiras esperanças, não recobrou o alento originário com o livro de propaganda de Simão Estaco da Silveira.” (Pág 132)
Isso deve ter ocorrido
por volta de 1619 no Maranhão.
Citando
um trecho do livro The Absorption of Immigrants, de S. N. Eisenstadt, Jose de Souza Martins reproduz a ideia de
que a migração, ou imigração, compreende
três fases: “Primeira, a motivação para migrar – as necessidades e disposições que levam as pessoas a saírem
de um lugar para outro; segunda, a estrutura
do processo migratório real, da transição física da sociedade original para a nova; terceira, a assimilação dos imigrantes pelo esquema social
e cultural da nova
sociedade”. (Pág. 20)
Tem-se que o assentamento é um processo extremamente complexo e sem momentos
claramente definidos, exceto
aquele em que o homem toma posse da terra.
Daí
a compreensão de que o anúncio da área de comunicação social de um governo sobre o alcance de sua meta,
geralmente a de assentar milhares de famílias durante
a sua gestão, nunca
foi verdade e nem poderia ser.
A FALTA DE PLANEJAMENTO GOVERNAMENTAL
Por volta de 6.500 A. C., começou a ocupação do território americano
pelo homem.
Embora
esses povos pré-históricos já se dedicassem à agricultura, a atividade destinava-se apenas às suas subsistências e, como não buscavam o excedente comercial, não havia tendência à expansão
de seus domínios, atitude que normalmente leva à destruição da natureza. Também
por isso, são pouquíssimos ou inexistentes os resquícios dessas
ocupações pré-históricas na configuração fundiária atual do Continente.
Durante
muitos séculos, a flora e a fauna ficaram íntegras, em uma convivência naturalmente harmoniosa. Em contraste,
apenas nos últimos cinco séculos, o povo
brasileiro já devastou mais da metade do território nacional, causando a extinção de inúmeras espécies animais e
vegetais.
A
colonização, assim chamada pelos livros de história, após a descoberta do Brasil, começou a ocorrer por volta de 1550, com a introdução do cultivo da cana- de-açúcar no Nordeste brasileiro.
Os
registros demonstram, inicialmente, a intenção e, depois, a execução de ações predatórias, bem como a importação de vegetais e animais exóticos,
cujas consequências, em princípio, são imprevisíveis.
Ao tratar de uma armada de guarda-costas, em 1527, comandada por Cristóvão Jaques,
a fim de retirar franceses
que ocupavam terras
na Colônia, mesmo com sucesso,
Capistrano descreve e confirma a premissa do parágrafo anterior:
“As armadas de quarda-costa eram simples paliativos; só povoando a terra, cortar-
se-ia o mal pela raiz. Cristóvão Jaques
ofereceu-se a trazer
mil povoadores: oferecimento semelhante fez João de Melo da Câmara,
irmão do capitão-mor da Ilha de São Miguel.
Indignava-se este vendo que até então a gente que vinha ao Brasil limitava-se a comer os alimentos da terra e tomar as índias por mancebas, e propôs trazer numerosas famílias,
bois, cavalos, sementes etc.” (Pág. 59) Eram os sinais de
que a terra viria a
ser ocupada, valorizada, disputada, destruída.
Capistrano conta ainda que, a fim de atender
à vontade do Reino, em disputa de territórios
com os espanhóis, para “povoar o rio de São Pedro, mais tarde chamado Rio Grande do Sul... Em fevereiro
de 1737 entrou José da Silva Pais pelo
canal que sangra a lagoa dos Patos e a Mirim. No local que lhe pareceu mais apropriado desembarcou, fortificou-se. À sombra da fortaleza
foi-se adensando a população.
Dos Açores vieram várias famílias e agregaram-se a este núcleo primitivo; as capitanias do Norte por fôrça ou por vontade
forneceram não poucos colonos.” (Pág. 195)
A história dos assentamentos rurais no Brasil, quando não consequência
direta, é paralela à história das migrações.
“É
certo que uma política de imigração e colonização vinha sendo posta em prática no País desde o período colonial,
com a finalidade de povoar o extremo sul e garantir a posse do território brasileiro, nessa área, para a coroa portuguesa. A experiência imigrantista brasileira, aliás, limitava-se aos chamados núcleos
de povoamento e era essencialmente uma política de colonização.” – escreveu José de
Souza Martins. (Pág. 51)*
Luiz
Henrique Torres, em seu trabalho “A Colonização Açoriana no Rio Grande do Sul”, denota
não apenas a importância dos assentamentos para os problemas
que se faziam imediatos, por desejo da Coroa, como para a futura
organização urbana: “Por este
documento, se vê que os casais deveriam ser fixados em número de 60 nas terras devolutas de cada localidade, onde se faria a distribuição das datas. Entre as datas
assim distribuídas, deveria destinar-se uma
légua quadrada para logradouro público. Nele, deveria ser assinalado o quadrado da praça, que seria de quinhentos
palmos de face, e num dos lados deveria
edificar a Igreja. Como se vê trata-se do planejamento de núcleos Habitacionais que seriam as futuras vilas
ou cidades do Brasil Colonial.”
A organização dos espaços rurais sempre foi anárquica em relação às
técnicas de implantação, já que a pautação dos assentamentos era a propriedade, mesmo em forma de
sesmaria, e a ganância por possuir e expandir essas posses, ao que tudo
indica.
Era lógico,
portanto, que à situação fossem
colocados limites. No livro A Questão Nacional e Assentamentos Rurais na
Paraíba, Francisco Varela aponta: “Por exemplo,
a Carta Régia de 27/12/1695 fixa o teto máximo das sesmarias, que anteriormente obedeciam a critérios vagos,
para cinco ou quatro léguas de comprimento
por uma de largura. Dois anos depois, esse teto é restringido para três e, em alguns casos, para duas léguas
de comprimento por uma de largura, ou
légua e meia em quadra, mas na prática esses limites eram freqüentemente ultrapassados”. Ao texto, corresponde a seguinte nota de rodapé:
“A légua linear
de sesmaria correspondia a 6,6 km.”
(Pag. 50)
Acerca do uso especulativo das sesmarias, ex-funcionário do Incra Francisco Varela ainda registra:
“... como informa Couto Reis em 1785, ‘os adquirentes... entravam no projeto de vende-las, a quem desejava terras, e as não alcançava por não ter amigos... e quando isso não sucedia,
iam vendendo por pedaços, ou reservavam
partes e aforavam o resto...’ (in: Faria, 1998: 121-122).” (Pag. 54) Segundo José de Souza Martins, “Tanto os princípios que regeram a organização dos núcleos coloniais
após a Lei de Terras
em 1850, quanto os que nortearam a sua reorganização em 1886-1887, tinham por fundamento a ‘mercantilização’ da terra. De início, o objetivo era impedir que o imigrante
se transformasse em proprietário pela simples posse
de terrenos devolutos, o que, se ocorresse, o transformaria em um concorrente do grande proprietário e, sobretudo, a este privaria do braço trabalhador.” (Pág. 81)
Não apenas a especulação imobiliária é tradição na sociedade
brasileira, como também a falta de
planejamento, seja por ignorância das técnicas, seja por interesses pessoais.
Para
definir a localização de um núcleo
colonial, em manuscrito de 24 de setembro de 1874, denominado “Relatório do
exame feito em várias fazendas e localidades,
na margem esquerda do Rio Tietê por ordem do Digno Presidente da Província de São Paulo”, de autoria de
Nicolau D”Athogino, registra José de Souza
Martins: “No confronto das propriedades (p. ex. Fazenda Caaguaçu e a Fazenda
de São Caetano), o engenheiro encarregado da medição
concluiu pela superioridade da Fazenda de São Caetano,
‘já pela sua posição, já pela qualidade de suas terras e dimensões, já
pela facilidade de poder-se empregar em uma grande parte dela os instrumentos aratórios’. (Pág. 62)
Como se pode observar,
desde aquele tempo,
a escolha do sítio sempre
foi feito exclusivamente sob a ótica agronômica,
desprezando as informações de outras áreas do conhecimento humano,
mesmo havendo preocupações sociais anteriores às vistorias, a ver o exemplo do registro de Varela: “Pensamento esse, também compartilhado pelo Ministro João Alfredo que em 1889, após a abolição da escravidão, propôs a desapropriação
das terras situadas às margens das ferrovias
e dos rios navegáveis para implantação de colônias agrícolas
(Andrade, 1987).” (Pág. 64)
O
imediatismo exigido pelas vaidades políticas, até hoje, deflagra processos, envolvendo vidas humanas, de forma
irresponsável, o que leva a execuções parciais, difíceis, demoradas, antieconômicas.
Sobre a Fazenda São Caetano, José de Souza Martins redigiu:
“Essa foi uma fase de ‘ensaio e erro’ da parte dos funcionários da colonização, supostos
orientadores dos imigrantes. Outros problemas juntaram-se a esse. Confiando
nas construções existentes na fazenda para abrigar os colonos – um dos pontos justificadores da política do ‘bom negócio’
– a burocracia oficial não tomou medidas
para alojar e ocupar os imigrantes. Estes foram envolvidos por tarefas relativas à criação das condições mínimas
necessárias ao funcionamento do núcleo.
Das 45 casas provisórias existentes em 1879, 10 foram construídas pelos próprios possuidores, mediante auxílio do Estado’ e outras 35 foram feitas por administração. Como entre os colonos havia alguns carpinteiros, foram ‘aproveitados
na construção de casas provisórias de madeira’.” (Pág. 104) Gerenciando a coisa pública atabalhoadamente, muitas vezes, perde-se o foco do objetivo
e as metas acabam se tornando outras que não as iniciais. Acontece muito até hoje e aconteceu no núcleo colonial de São Caetano, como relata o mesmo autor: “Tanto para os que se dedicaram à indústria extrativa
de madeira e lenha, como para os que mais tarde foram trabalhar, por conta própria
ou não, nas olarias que começaram a surgir, a agricultura, pela própria natureza
do trabalho que absorvia,
passou a ter uma importância secundária nos rendimentos da família. Os colonos viram-se,
assim, na condição
de proprietários de terrenos ‘sem utilidade prática’.” (Pág. 147)
É natural que um assentado, ao não conseguir sucesso na lavoura e obter
uma alternativa de sobrevivência,
passe a considerar seu patrimônio como apenas
moeda. A venda de parcelas pelos assentados originais, nos atuais
projetos de reforma agrária ou
colonização, é mais comum do que divulgam os números oficiais. E isso também não é novidade.
José de Souza Martins ainda informa sobre a colonização paulista, em
São Caetano, que “um único comprador, o Banco União de São Paulo, adquiriu,
entre 1890 e 1891, de cinco proprietários, terrenos que somavam
268,62 ha, ou 27,8% da área do núcleo colonial
na mesma ocasião.
Dos cinco vendedores, três eram colonos,
um era antigo morador da região e um outro,
ao que parece, comprara, já anteriormente,
terras aos colonos.” (Pág. 148)
E se a tradicional falta de planejamento acontece nas ações julgadas
maiores, nas outras, não menos importantes, o mal se repete.
Como,
inicialmente, a ótica é a da produção agropecuária, a urbanização acaba sendo esquecida. É comum, também, os
empreendimentos se ressentirem da falta de programas e de edifícios
adequados para atendimento à saúde,
educação etc. e até mesmo reserva de áreas para essas e outras
atividades humanas básicas,
como é o caso de
um lugar para o enterro dos mortos.
Ainda sobre o Núcleo Colonial de São Caetano, Martins descreve algo que também vem se repetindo em muitos projetos
de assentamento: “A pobreza da maior
parte da população e, mesmo a deficiência das condições materiais do núcleo colonial, como o médico que
precisava ser chamado do Brás, a farmácia que
tinha que ser procurada na Capital ou em São Bernardo, o cemitério que devia ser alcançado no Brás ou na Quarta
Parada, eram outros fatores na acentuação da solidariedade da população.” (Pág. 184)
E, para demonstrar a má gestão governamental em tempos recentes,
podemos recorrer à publicação
“Urbanismo Rural”, de José Geraldo da Cunha Camargo, escrita em 1973, aquela mesma que consagrou os termos Agrovila,
Agropólis e Rurópolis, utilizados
para identificar os modelos urbanos utilizados na Rodovia Transamazônica.
Diz
o arquiteto: “A rodovia Transamazônica já havia sido iniciada em diversas frentes
de trabalho (Altamira-Itaituba, Marabá-Jatobal, Marabá-Estreito), quando começou uma ocupação desordenada das
terras ao longo da estrada, com invasão
de migrantes e até de pessoal contratado pelas Firmas Construtoras para serviços de Construção da rodovia.
O fluxo migratório aumentava dia a dia e as áreas amazônicas a serem cortadas
pela grande estrada eram ainda praticamente desconhecidas, não havendo levantamentos topográficos, pedológicos,
mapas de utilização do solo e outros conhecimentos
indispensáveis para a implantação de um projeto racional de colonização. Os trabalhos de prospecção
nas áreas que foram entregues ao Projeto
RADAM só ficariam prontas dentro de dois anos ou mais.” (Pág.
26)
A
própria iniciativa de construir a estrada, segundo inúmeros registros, não decorreu
de estudos de viabilidade econômica, mas de uma decisão pessoal
do Presidente Médici, após uma viagem à Região Nordeste.
Certamente,
ele estava envolvido pela doutrina de Segurança Nacional, pilar mestre da ideologia dos governos
militares, pretendendo, em primeiro, ocupar a
Amazônia, inclusive facilitando o combate a guerrilhas, como no caso das
que ocorreram na região conhecida
como “Bico do Papagaio”, e tendo como subproduto o benefício do assentamento de agricultores, tal qual ficou estampado
na propaganda governamental, mediante a divulgação do lema do programa
em seu governo: “Terras
sem homens para homens sem terra”.
As tragédias sociais
e ambientais causadas
pela falta de planejamento governamental, principalmente nos dias
atuais, quando se dispõe de técnicos e técnicas
sofisticadas, além de permitir grandes saques ao erário, ficarão como uma grave
herança negativa para as
gerações futuras.
CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS
De 1500 até hoje, foram editados mais de mil e quinhentos diplomas
legais, tratando do uso do solo rural brasileiro. A maioria foi voltada a aspectos administrativos e cartoriais. Observando a genealogia dessa coletânea, pode-se
dizer que a história da propriedade no Brasil tem sua raiz na Lei das
Sesmarias, promulgada em 1375, durante
o reinado de Fernando I de Portugal. Em razão da peste
negra, que aniquilou boa parte da população urbana e, por consequência, reduziu a população rural, por mortes ou
migrações para as próprias cidades, onde
sobravam empregos, houve um desabastecimento de alimentos no país, obrigando
a medidas que visavam retornar a mão de obra às lavouras.
Sesmaria, segundo De Plácido e Silva, é palavra derivada de sesma, do
latim sex, “expressão usada no
direito para designar as datas de terras que, outrora, se davam para que fossem libertas das ervas daninhas e plantas
infrutíferas e depois cultivadas”.
“E se dizia
sesmaria, de sexta parte de alguma coisa, porque o concessionário ficava na obrigação de lavrar essas
terras incultas, mediante a sexta parte dos
frutos.”
“Originariamente, as sesmarias recaíram sobre terras cujos senhorios
não as cultivavam, deixando-as em abandono, desaproveitadas e em ruína.”
Sob
essa forma de destinação de terras, quiçá pela primeira vez, foi instituída uma versão da função social, visto que as
terras poderiam ser expropriadas, se não
houvesse a contrapartida da produção. De fato, usava-se o instituto da enfiteuse, no qual o beneficiário recebe o
domínio da terra, de forma alienável e transmissível
aos herdeiros, mas não detém o direito de sua propriedade plena. A rigor, enfiteuse, ainda segundo o Dicionário Jurídico
citado, “derivado do grego emphyteusis, do verbo emphyteusein (plantar ou melhorar
terreno inculto), designa, na terminologia jurídica, o
contrato pelo qual o proprietário de terreno
alodial cede a outrem o direito de percepção de toda utilidade do mesmo terreno,
seja temporária ou perpetuamente, com o encargo de lhe pagar uma pensão
ou foro anual e a condição de conservar para si
o domínio direto.”
Foi sob a luz dessa lei que o Brasil foi descoberto e inicialmente colonizado, tendo como exemplo
maior da situação
as chamadas capitanias hereditárias. Caso não cumprissem seu papel, eram devolvidas ao Reino. Daí a origem do termo “terras devolutas”. Hoje, segundo Hely Lopes Meirelles, em seu livro Direito Administrativo Brasileiro, “Terras devolutas são todas aquelas
que, pertencentes ao domínio público de qualquer das
entidades estatais, não se acham utilizadas
pelo Poder Público,
nem destinadas a fins administrativos específicos.” Somente com a chegada das influências da Revolução Francesa
às mentes dos dirigentes
brasileiros, buscou-se o conceito de propriedade particular plena, que se costuma denominar simplesmente propriedade, com toda a força que a palavra
carrega na sociedade
capitalista, força essa que vigora
até hoje. A influência pode ser aferida
na sua definição por Voltaire,
em seu Dicionário Filosófico:
“Positivamente, o possuidor de um terreno cultivará muito melhor sua herança
do que a de outro. O espírito
de propriedade duplica
a força do homem. Qualquer um trabalha para si e para sua
família com mais vigor e prazer do que para um senhor”.
Nesse
clima libertário, em 17 de julho de 1822, foi estabelecida a Resolução nº 76, provocada por uma solicitação de
sesmaria, que redundou na seguinte ementa: “Manda
suspender a concessão de sesmarias futuras
até a convocação da Assembléa Nacional Constituinte”. O documento é chancelado “com a rubrica
de S. A. Real o Príncipe Regente” e assinado por José Bonifácio de
Andrada e Silva. Foi o sinal mais
forte das mudanças que se anunciavam. A partir desse momento, as leis passaram a seguir o mesmo diapasão,
com uma clara garantia da propriedade particular e uma paulatina
evolução das preocupações com a função social
da propriedade.
Na Constituição Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, para efeito do assunto
em foco, destacam-se os
seguintes pontos:
“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base
a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira
seguinte.
...
VII. Todo o Cidadão tem em sua casa um asylo inviolavel. De noite não se poderá
entrar nella, senão por seu consentimento, ou para o defender de
incendio, ou inundação; e de dia só será franqueada a sua entrada
nos casos, e pela maneira,
que a Lei determinar.
...
XXII.
E' garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico
legalmente verificado exigir o uso, e emprego
da Propriedade do Cidadão,
será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação.”
Somente em 18 de setembro de 1850, mais de vinte e cinco anos após o nascimento da Constituição
Imperial, a lei N.º 601 dispôs “sobre as terras devolutas
do Império”.
No
seu Art. 5º afirmava: “Serão legitimadas as posses mansas e pacificas, adquiridas por occupação primaria, ou
havidas do primeiro occupante, que se acharem
cultivadas, ou com principio de cultura, e morada, habitual
do respectivo posseiro, ou de quem o
represente...”
É
interessante observar o surgimento do conceito de “morada habitual” no contexto
das leis, cujos efeitos são
observados até hoje.
Das regras apontadas, tinha-se que: “Art. 14. Fica o Governo
autorizado a vender
as terras devolutas em hasta publica, ou fóra della, como e quando
julgar mais conveniente, fazendo
previamente medir, dividir,
demarcar e descrever a porção das mesmas terras que houver de ser
exposta á venda, guardadas as regras seguintes:
§
1º A medição e divisão serão feitas, quando o permittirem as circumstancias locaes, por linhas que corram de norte ao
sul, conforme o verdadeiro meridiano, e
por outras que as cortem em angulos rectos, de maneira que formem lotes ou quadrados de 500 braças por lado demarcados
convenientemente.
Art.
16. As terras devolutas que se venderem ficarão sempre sujeitas aos onus seguintes:
§
1º Ceder o terreno preciso para estradas publicas de uma povoação a outra, ou algum porto de embarque, salvo o
direito de indemnização das bemfeitorias e do terreno
occupado.
§
2º Dar servidão gratuita aos vizinhos quando lhes for indispensavel para sahirem
á uma estrada publica, povoação
ou porto de embarque, e com indemnização quando lhes for proveitosa por incurtamento de um quarto
ou mais de caminho.
§ 3º Consentir a tirada de aguas desaproveitadas e a passagem
dellas, precedendo a indemnização das bemfeitorias e terreno occupado.
§
4º Sujeitar ás disposições das Leis respectivas quaesquer minas que se descobrirem nas mesmas terras.”
No mesmo texto, já era tratado
o assunto de colonização, mas com reservas. Em seu Artigo 18, o
Governo ficava “autorizado a mandar vir annualmente á custa do Thesouro certo numero de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que for marcado,
em estabelecimentos agricolas, ou nos trabalhos
dirigidos pela Administração publica, ou na formação de
colonias nos logares em que estas mais
convierem; tomando anticipadamente as medidas necessarias para que taes colonos achem emprego logo que
desembarcarem.” Portanto, os colonos livres eram desejados para serem empregados e não proprietários, como certamente era o
desejo da oligarquia rural brasileira, com forte representação política
ao longo de nossa história.
O exemplo corrobora outra afirmação de Engels: “Além disso, na maior parte dos Estados históricos, os direitos concedidos aos cidadãos são regulados de acordo com as posses dos referidos cidadãos,
pelo que se evidencia ser o Estado um organismo
para a proteção dos que possuem contra os que não possuem.” (Pág.62)
Sobre
o mesmo tema, assim se manifesta Martins: “As duas expressões da instauração dessa crise foram a
universalização jurídica da propriedade privada da terra pela Lei de Terras de 1850 e a implantação completa do
trabalho livre pela Lei Áurea em
1888. No primeiro caso, a terra não podia ser adquirida por outro meio que não fosse a compra e,
assim, tornou-se equivalente de capital, isto é, renda
territorial capitalizada.”
(Pág. 14)
É
de se deduzir que a lei pouco se importava, ou se importava de modo superficial, com os problemas
sociais já presentes
no cotidiano brasileiro. Eduardo Magalhães
Ribeiro comenta: “O que motivou a Lei
de Terras, na verdade, foi o problema do trabalho. No Brasil, até então,
vigorava o regime escravista de
trabalho: o escravo era um bem do senhor. A riqueza patrimonial de um produtor rural não estava expressa
na terra, que não possuía preço de mercado.” (Pág. 8)
E
acrescenta: “O regime de trabalho escravo tinha sua razão de ser, em grande parte, exatamente pela oferta quase
ilimitada de terra livre. Enquanto houvesse terra sem preço, livremente apropriada pela população livre, não seria
criado um mercado
regular de trabalho
rural. Numa situação
que a terra era livre, o trabalhador deveria, necessariamente, ser
cativo, pois de outra forma ele se apossaria da terra e se recusaria
a trabalhar para outros.” (Pág. 9)
Na
Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891,
apenas o artigo 72 aludia ao assunto:
“§ 11 - A casa é o asilo
inviolável do indivíduo; ninguém pode aí penetrar de noite, sem consentimento do morador, senão para
acudir as vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma
prescritos na lei.”
Ҥ
17 - O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou
utilidade pública, mediante indenização prévia.”
E
na Constituição seguinte, de 16 de julho de 1934, esse direito era repetido no Artigo
130, mas considerando o interesse
social:
“16)
A casa é o asilo inviolável do indivíduo. Nela ninguém poderá penetrar, de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir
a vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos
e pela forma prescritos na lei.
17)
É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse
social ou coletivo,
na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade
ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente,
como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde
o bem público o exija,
ressalvado o direito à indenização ulterior.”
A
novidade constitucional, no que respeita à realidade rural,
estava no Artigo
121, com claro protecionismo aos nacionais:
Ҥ
4º - O trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial, em que se atenderá,
quanto possível, ao disposto neste artigo. Procurar-se-á fixar o homem
no campo, cuidar da sua educação rural, e assegurar ao trabalhador
nacional a preferência na colonização
e aproveitamento das terras públicas.”
Ҥ
5º - A União promoverá, em cooperação com os Estados, a organização de colônias agrícolas, para onde serão
encaminhados os habitantes de zonas empobrecidas, que o desejarem, e os sem trabalho.”
“§ 6º - A entrada de imigrantes no território nacional
sofrerá as restrições necessárias à garantia
da integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo, porém, a corrente
imigratória de cada país exceder, anualmente,
o limite de dois por cento sobre o número total dos respectivos nacionais
fixados no Brasil durante os últimos cinqüenta anos.”
“§ 7º - É vedada
a concentração de imigrantes em qualquer ponto do território da União, devendo
a lei regular a seleção,
localização e assimilação do alienígena.” A Constituição de 1937, que buscava concentrar o máximo de poderes nas mãos do Governo, manteve as ideias das
anteriores, mas de forma compatível com a ditadura do Estado Novo, de Getúlio
Vargas.
É de se destacar
apenas o Art. 122 e dois de seus incisos.
Dizia: “A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o
direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade,
nos termos seguintes:”
“6º)
a inviolabilidade do domicílio e de correspondência, salvas as exceções expressas
em lei;”
“14) o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública,
mediante indenização prévia.
O seu conteúdo e os seus limites
serão os definidos nas leis que lhe
regularem o exercício;”
Portanto,
não se tratava, na Carta Maior, de desapropriação, considerando o interesse social, como na anterior e na
posterior. A Constituição da República dos Estados
Unidos do Brasil, de 18 de setembro de 1946, retornou
as liberdades
individuais de 1934, retiradas na de 1937, e com mais especificidades,
como no Capítulo II – Dos direitos
e Garantias Individuais:
“Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§
16 - É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública,
ou por interesse social, mediante
prévia e justa
indenização em dinheiro.
Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes
poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando,
todavia, assegurado o direito a indenização ulterior.
Art
147 - O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá,
com observância do disposto no art.
141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.”
Ali
estava uma semente para a reforma agrária. Mais à frente, ficava proposto: “Art 156 - A lei facilitará a fixação do
homem no campo, estabelecendo planos de
colonização e de aproveitamento das terras pública. Para esse fim, serão preferidos os nacionais e, dentre eles, os
habitantes das zonas empobrecidas e os desempregados.
§ 1º - Os Estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas, que
nelas tenham morada habitual, preferência para aquisição até vinte e cinco hectares.
§ 2º - Sem prévia
autorização do Senado Federal, não se fará qualquer alienação
ou concessão de terras
públicas com área superior a dez mil hectares.
§ 3º - Todo aquele que, não sendo
proprietário rural nem urbano, ocupar,
por dez anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio,
trecho de terra não superior
a vinte e cinco hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo nele sua morada, adquirir-lhe-á a propriedade, mediante
sentença declaratória devidamente transcrita.”
Mais tarde, sob a pressão dos militares que haviam tomado o poder na Revolução de 1964, mais precisamente em 15
de março de 1967, passou a vigorar a Constituição da República
Federativa do Brasil.
Sob o enfoque
militarista, o Artigo 91 dizia competir ao Conselho de Segurança Nacional a “concessão de terras, abertura
de vias de transporte e instalação de meios de comunicação;”
No Capítulo dos Direitos e Garantias Individuais, não houve alterações significativas, no que respeita ao direito de propriedade.
Porém, no Capítulo “Da Ordem Econômica
e Social”, o Artigo 157 afiançava
que “A ordem econômica
tem por fim realizar a justiça social,
com base nos seguintes princípios:
- l - liberdade de iniciativa;
- II - valorização do trabalho como condição da dignidade humana;
- III - função social
da propriedade;
§ 1º - Para os fins previstos neste artigo a União poderá promover a desapropriação
da propriedade territorial rural, mediante pagamento de justa indenização, fixada segundo os critérios que a lei estabelecer, em títulos especiais
da dívida pública,
com cláusula de exata correção
monetária, resgatáveis no
prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a qualquer tempo,
como meio de pagamento de até
cinqüenta por cento do imposto territorial rural e como pagamento do
preço de terras públicas.
§ 2º - A lei disporá sobre o volume anual ou periódico das emissões,
sobre as características dos títulos, a taxa dos juros, o prazo e as condições
de resgate.
§ 3º - A desapropriação de que trata
o § 1º é da competência exclusiva da União e limitar-se-á às áreas incluídas nas
zonas prioritárias, fixadas em decreto do Poder Executivo, só recaindo sobre propriedades rurais cuja forma de exploração contrarie o disposto neste artigo, conforme
for definido em lei.
§
4º - A indenização em títulos somente se fará quando se tratar de latifúndio, como tal conceituado em lei, excetuadas as benfeitorias necessárias e úteis, que serão
sempre pagas em dinheiro.”
Um
conceito extremamente importante, no § 3º descrito, mas que pouco foi considerado, é o de “zona prioritária”, tratado, inclusive, na legislação complementar, descrita mais
adiante.
Até
mesmo a Emenda Constitucional N.º 1, de 17 de outubro de 1969, uma verdadeira “outra Constituição”, sob ditames mais rigorosos ainda da doutrina
da segurança nacional,
manteve princípios como o da função social
da propriedade, que muitos
julgam ter caráter tipicamente socialista.
Com
a redemocratização do Brasil, a Constituição da República Federativa do Brasil,
de 5 de outubro de 1988, passou a apresentar, aparentemente, excessivos 250 artigos,
fora as disposições transitórias.
No
Artigo 5º, no bojo dos Direitos e Garantias Individuais, “é garantido o direito de propriedade” com o condicionante de que
“a propriedade atenderá a sua função
social”.
No
mesmo artigo, a proteção da pequena propriedade, “assim definida em lei, desde que trabalhada pela família”, evita
que seja objeto de penhora para pagamento de débitos de sua atividade
produtiva.
Mais claro ficaram, também,
os direitos sociais
à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social,
à proteção à maternidade e à infância, à assistência aos desamparados,
para todos os cidadãos. Entretanto, esses direitos ainda não são oferecidos de forma satisfatória e específica às populações rurais e às de pequenas
cidades. Relevante também é a
competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, ampliada para “proteger o meio
ambiente e combater a poluição em
qualquer de suas formas” e “preservar as florestas, a fauna e a flora”.
Talvez um erro tenha sido cometido no Artigo 30 dessa Constituição
atual, no qual é fixado competir aos
municípios “no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do
parcelamento e da ocupação do solo urbano”.
Por que não também do solo
rural?
No
raciocínio oposto e desejável, sem discriminar a qualificação de urbano ou rural, e com uma ótica ampla e integrada,
na Seção IV – Das Regiões, fica praticamente
recomendado que a União articule “sua ação em um mesmo complexo geoeconômico e social, visando a seu desenvolvimento e
à redução das desigualdades regionais”. É dito ainda que a União incentivará a “recuperação de terras áridas
e cooperará com os pequenos
e médios
proprietários rurais para o estabelecimento, em suas glebas, de fontes
de água e de pequena
irrigação”.
Para satisfazer aos anseios progressistas da maioria dos constituintes, o Capítulo
III foi dedicado exclusivamente à “Política Agrícola e Fundiária e da Reforma
Agrária”.
Nesse texto, ficaram insuscetíveis de
desapropriação, para fins de reforma agrária, “a pequena e média propriedade rural, assim definida
em lei, desde que seu proprietário não possua outra”,
assim como “a propriedade produtiva”. Nele também
ficou acertado que a função social “é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I
- aproveitamento racional
e adequado;
II -
utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” Buscando retomar a forma de propriedade útil ou de domínio útil apenas, o Artigo 189 estabelece que: “Os beneficiários da
distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária
receberão títulos de domínio ou de concessão
de uso, inegociáveis pelo
prazo de dez anos.”
Confirmando
sua condição evolutiva, com preocupações sociais e ecológicas, a Carta atual alargou
o campo dos cuidados com o Meio Ambiente, afirmando, em seu Artigo 225, que “Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado,
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público
e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.”
“Para
assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público,” entre outros,
“exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo
prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade”. Naturalmente,
isso serve, ou deveria servir,
também para os assentamentos rurais.
Em inciso posterior, é confirmada a intenção dos legisladores que foi a
de “proteger a fauna e a flora,
vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção
de espécies ou submetam os animais a crueldade.”
A
sabedoria dos homens também se mostrou ao sentenciar: “São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos
Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção
dos ecossistemas naturais.”
Portanto, essas áreas não podem ser ocupadas, exceto em condições
especialíssimas, que não contrariem os objetivos maiores, como nos casos
de pesquisas ou, talvez, projetos de extrativismo racional.
Por
fim, é bom saber que também os índios foram aquinhoados com o Capítulo VIII, no qual está o Artigo 231. “São
reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens.
§
1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais necessários a seu bem- estar
e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes
e tradições.”
Significativo também foi o Artigo 243, que sujeita
as glebas, onde forem localizadas culturais ilegais de plantas psicotrópicas, à expropriação, ficando
sua destinação para o
assentamento de agricultores. Não ficou claro se, em uma propriedade de 1.000
hectares, onde for encontrada uma plantação ilegal
em um hectare, será expropriada toda a área ou apenas um hectare.
Portanto, afora alguns poucos percalços, os governos atuais não podem reclamar
da falta de instrumentação constitucional para implementar ações de assentamento de trabalhadores rurais
em condições satisfatórias.
A Constituição já é quase um
roteiro, ou melhor, quase um enredo.
MAIS UM POUCO
DE LEIS
Pelo Decreto nº 29.803, de 25 de Julho de 1951, o Governo criou a
Comissão Nacional de Política
Agrária, “com o objetivo de estudar e propor ao Presidente da República, as medidas julgadas
necessárias para a organização e desenvolvimento da economia agrícola
e o bem estar rural”.
Esse
diploma legal, se não determinava ações práticas para a solução dos problemas
rurais, estabelecia um marco para que a atenção do país se voltasse para eles. Aludia a estudos para a produtividade e estabilidade
da produção, amparo, previdência e assistência aos trabalhadores,
melhor utilização das terras
de domínio público, preservação dos recursos
naturais e outros.
Muito provavelmente, esse decreto e os estudos dele decorrentes serviram
como referência na elaboração
da Lei nº 2.163, de 5 de Janeiro de 1954, que criou o Instituto Nacional de Imigração e Colonização, e, em 30 de
novembro de 1964, da Lei N.º
4.504, o conhecido Estatuto da Terra.
Por
ainda estar em vigor, pelo menos, em grande parte de seu texto, e para ilustrar
mais precisamente os assuntos relacionados ao espaço físico dos assentamentos rurais, é importante ter em
vista os seguintes artigos do famoso estatuto, a seguir descritos
e, por vezes, comentados, tendo em vista o desfecho
que se pretende dar a este livro:
“Art. 3º O Poder Público
reconhece às entidades
privadas, nacionais ou estrangeiras,
o direito à propriedade da terra em condomínio, quer sob a forma de cooperativas quer como sociedades abertas constituídas na forma da legislação em vigor.”
“Art. 24. As terras desapropriadas para os fins da Reforma Agrária que,
a qualquer título, vierem a ser incorporadas ao patrimônio do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária,
respeitada a ocupação
de terras devolutas
federais manifestada em cultura efetiva
e moradia habitual, só poderão ser distribuídas...” O conceito de moradia habitual, ou morada habitual,
por certo, tinha por objetivo
assegurar a intenção do legislador em beneficiar o agricultor mais
humilde, aquele que, de fato, cultiva
a terra juntamente com sua família e, sem maiores patrimônios, nela reside.
Contudo, o que era boa intenção torna-se
um acorrentamento do
agricultor e de sua família à terra que recebem, isso de fato ou de
direito.
É possível até mesmo fazer um paralelo com os programas
de financiamento de habitações urbanas.
Os cidadãos de classes econômicas mais avantajadas podem receber os recursos emprestados pelo Governo e construírem suas casas de acordo com suas vontades.
Já os mais humildes, na maioria dos casos, só têm acesso aos financiamentos se entrarem em programas de habitação popular,
nos quais o projeto arquitetônico já é pré-definido no que respeita
a forma e localização. Às vezes, o beneficiário serve até como mão-de-obra mal paga na construção de sua futura
residência, que vai ser onerada
com um significativo sobrepreço, por conta dos maus costumes do
mercado financeiro. No caso dos imóveis
rurais, os fazendeiros podem até mesmo receber benesses
do Governo, como financiamentos baratíssimos ou a fundo
perdido, e morar com suas famílias, confortavelmente, em boas cidades
do país ou fora dele.
Os agricultores “zero-renda”, assim apelidados os pobres, são obrigados a morar na
terra que recebem, na maioria dos casos, sem serviços próximos, seja de educação,
de saúde, de lazer etc.
“Art. 61
§
4º Nenhum projeto de colonização particular será aprovado para gozar das vantagens desta Lei, se não consignar para a empresa
colonizadora as seguintes obrigações mínimas:
a)
abertura de estradas
de acesso e de penetração à área a ser
colonizada;
b)
divisão dos lotes e respectivo
piqueteamento, obedecendo a divisão, tanto quanto
possível, ao critério de acompanhar as vertentes, partindo a sua orientação no sentido do espigão para as
águas, de modo a todos os lotes possuírem água própria ou comum;
c)
manutenção de uma reserva
florestal nos vértices
dos espigões e nas nascentes;”
É interessante observar que foi colocada no “item b” uma experiência importante no
desenho das estradas. Seu traçado deve, sempre que possível, seguir os divisores de água, o que traz economia em
sua construção, por evitar aterros, pontes
e bueiros. Também facilita a sua manutenção, face aos efeitos das chuvas, pois evitam as enxurradas.
Outrossim, apresentam ainda vantagens como, por exemplo, a redução de águas paradas,
onde proliferam mosquitos, em especial os que transmitem a malária.
“Art. 64. Os lotes de colonização podem ser:
I -
parcelas, quando se destinem ao trabalho agrícola do parceleiro e de sua família cuja moradia, quando não for no
próprio local, há de ser no centro da comunidade a que elas
correspondam;”
Como
se pode deduzir, a variante da morada habitual nos núcleos comunitários não invalida o comentário anterior, pois
esses não contam com serviços, pelo menos, enquanto
não se tornam cidades convencionais, por força de sua evolução
urbana, geralmente sem a intervenção planejada do governo.
“II - urbanos, quando se destinem
a constituir o centro da comunidade, incluindo
as residências dos trabalhadores dos vários serviços implantados no
núcleo ou distritos, eventualmente às dos próprios
parceleiros, e as instalações necessárias à localização dos serviços
administrativos assistenciais, bem como das atividades cooperativas, comerciais, artesanais e industriais.”
Embora algumas exigências se refiram a projetos de colonização
particular, é lógico que também sejam parâmetros para os
de iniciativa pública.
Adiantando
outros comentários, é de se registrar que os núcleos urbanos em projetos de assentamento ou se tornaram
cidades de porte, ou não evoluíram a ponto
de ofertar serviços adequados às necessidades humanas atuais. Para regulamentar alguns capítulos do Estatuto
da Terra, em 27 de outubro de 1966, foi
editado o Decreto N.º 59.428, do qual é importante destacar as seguintes partes:
“Art
5º Colonização é tôda atividade oficial ou particular destinada a dar acesso à propriedade da terra e a promover
seu aproveitamento econômico, mediante o exercício de atividades agrícolas, pecuárias e agro-industriais, através da divisão
em lotes ou parcelas, dimensionados de acôrdo com as regiões definidas
na regulamentação do Estatuto da Terra,
ou através das cooperativas de produção nela previstas.
§ 1º A colonização em áreas prioritárias terá por objetivo
promover o aproveitamento econômico da terra,
preferencialmente pela sua divisão em propriedades familiares congregados os parceleiros em cooperativas ou mediante formação
de cooperativas de colonização de tipo coletivo.”
Nota-se
que a preferência à propriedade familiar é usada como anteparo, a fim de não se falar da propriedade coletiva,
pois, na época, o socialismo era praticamente sinônimo de comunismo, e ambos estavam
proscritos pela ditadura
militar.
Na Seção II - Da Organização da Colonização, tentava-se prever uma organização até mesmo de espaços, talvez para auxiliar
alguns administradores leigos.
“Art 18. Os programas
de colonização serão baseados na formação de grupamentos de lotes em núcleos de colonização e, dêstes em distritos, quando
fôr o caso.
Art
19. Os lotes de colonização, nos têrmos e condições estabelecidas neste Regulamento, podem ser:
-
Parcelas - quando se destinarem ao
trabalho agrícola do parceleiro e de sua família,
cuja moradia, quando não fôr no próprio local, terá de ser no centro, da comunidade a que correspondam.
II -
Urbanos - quando se destinarem a constituir o centro da comunidade, incluindo:
a)
as residências dos trabalhadores
dos vários serviços implantados nos núcleos ou distritos e eventualmente
a dos próprios parceleiros;
b)
as instalações necessárias à
localização dos serviços administrativos essenciais,
bem como das atividades cooperativas, comerciais, artesanais e industriais;
§
1º A área das parcelas será determinada quando da elaboração do projeto respectivo de Colonização, em função de sua destinação agrícola, do mínimo de fôrça de trabalho
exigido para a construção da propriedade familiar
e das condições geo-econômica
da região.
§ 2º A área dos lotes urbanos será determinada em função das posturas municipais adotadas para a região,
procurando-se, sempre que possível sua adequação
ao chamado tipo "para rural", a fim de permitir sua utilização em atividades hortigranjeiras, de caráter
doméstico.”
A
ideia do chamado lote “para rural” é simpática, pois aparenta propiciar que a família
tenha certo sustento, em razão de seu tamanho,
por permitir quintais
com hortas, pomares,
criadouros de animais domésticos etc. Também permite as distâncias necessárias entre os poços de água potável e as
fossas vizinhas. Nesse sentido, entre
outras recomendações, a Fundação Nacional de Saúde, em seu Manual de Saneamento de 2006, recomenda “respeitar por
medidas de segurança, a distância mínima
de 15 metros entre o poço e a fossa
do tipo seca,
desde que seja construída dentro
dos padrões técnicos,
e, de 45 metros, para os demais focos de contaminação, como,
chiqueiros, estábulos, valões de esgoto, galerias
de infiltração e outros, que possam comprometer o lençol d’água que alimenta o poço;” e “deve-se, ainda,
construir o poço em nível mais alto que os focos de contaminação”.
O propósito é repetido pelo Art. 1.309 da Lei No 10.406,
de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil: “São
proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar, para uso ordinário, a água de poço, ou nascente alheia,
a elas preexistentes.”
Dessa mescla entre características urbanas e rurais,
surgem dúvidas ou contradições.
Pelo
art. 4.º, da Lei No 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que “Dispõe sobre o Parcelamento do Solo Urbano
e dá outras Providências”, em seu item II, “os lotes terão área mínima de 125 m2 (cento e
vinte e cinco metros quadrados) e frente mínima
de 5 (cinco) metros, salvo quando a legislação estadual ou municipal determinar maiores exigências, ou quando o loteamento se destinar a urbanização
específica ou edificação de conjuntos habitacionais de interesse social,
previamente aprovados pelos órgãos públicos competentes;”.
Na Transamazônica, seguindo
a orientação legal, foram previstos
lotes residenciais, com as
características de “para-rural”, variando de 3.000 m² a 500 m², “dependendo do grau de desenvolvimento
tecnológico na exploração dos lotes rurais
de produção, do desenvolvimento sócio-cultural e da filosofia
de vida dos habitantes para os quais será construída a Agrovila”, segundo
Camargo.
É
desnecessário dizer sobre a indesejável baixa densidade promovida nesse caso, o
que demanda uma infraestrutura onerosa, quando há.
Ademais,
pelo Art. 1.303 do Código Civil, “Na zona rural, não
será permitido levantar edificações a
menos de três metros do terreno vizinho.” Assim, um terreno de 1.250 m², ou seja, dez vezes o mínimo previsto na Lei
n.º 6.766, contará, obrigatoriamente, com uma faixa
non-aedificandi de 414 m2 de área, ou seja,
um terço da área do lote praticamente, o que não parece razoável. “Art 20. Serão consideradas de reserva ou de uso
coletivo dos núcleos de colonização, as
áreas que:
a) contenham riquezas
minerais explotáveis;
b)
por suas características topográficas e ecológicas não possuam condições
de aproveitamento imediato;
c) sejam necessárias a conservação dos recursos naturais;
d)
devem ser protegidas e preservadas para fins educativos, cênicos, recreativos ou turísticos;
e)
destinem-se a atividades
agro-pecuárias ou florestais em escala organizada.” Obviamente, o disposto no artigo acima já foi superado
por muitas outras leis.
O próprio
Código Florestal, instituído pela Lei 4.771,
de 15 de setembro de 1965, ou seja, pouco mais de um ano após o
Estatuto da Terra, modificou de forma muito mais ampla tais requisitos, na medida em que tratou
com maiores cuidados
o que deve ser área de preservação permanente, reserva legal, faixa de
matas ciliares, vegetações protetoras de encostas, dunas, restingas, chapadas
e outras áreas
de utilidade pública.
Desse
código que, no momento, está em vias de alteração, sob análise do Parlamento, destaca-se, para efeito de
desenho dos assentamentos, o artigo 8: “Na distribuição de lotes destinados à agricultura, em planos de colonização e de reforma agrária, não devem ser incluídas
as áreas florestadas de preservação permanente de que trata esta Lei, nem as florestas necessárias ao abastecimento local ou nacional
de madeiras e outros produtos
florestais.”
E
também o parágrafo 11 do Artigo 16: “Poderá ser instituída reserva legal em regime de condomínio entre mais de uma
propriedade, respeitado o percentual legal
em relação a cada imóvel, mediante a aprovação do órgão ambiental estadual competente e as devidas
averbações referentes a todos os imóveis envolvidos.”
Para
ilustrar o cuidado que se deve ter com o assunto, é bom informar que, em alguns casos de reservas na forma de
condomínio, ocorridos no Estado de Rondônia,
a falta de fiscalização e até mesmo a falta de interesse em sua proteção,
pelos próprios condôminos, ensejaram a destruição ou invasão dessas
áreas.
“Art 21. Escolhida a área para o núcleo, deverá ser elaborado o
respectivo anteprojeto que, em linhas gerais, conterá:
I - Caracterização sumária
dos aspectos físicos
da área, incluindo:
a) denominação e localização;
b)
topografia, superfície e limites;
c)
vias de acesso
e comunicações;
d) índices climáticos;
e) cobertura vegetal;
f)
solos;
g) hidrologia.“
Nesse artigo,
há duas claras impropriedades. Parte-se
do princípio de que a área já foi escolhida, sem caracterizar as
condições que devem nortear a escolha, e não
se exige nenhuma informação objetiva sobre o planejamento urbano, ou seja, não se pensava
em planejamento urbano.
Art 22. São condições
para aprovação e registro do projeto, além do detalhamento do anteprojeto e de
atendimento das exigências feitas para sua aprovação, a satisfação das seguintes obrigações mínimas:
I
- levantamento
sócio-econômico da área;
II -
tipos e unidades de exploração econômica perfeitamente determinados e caracterizados;
III - valor
e modalidade de amortização de cada tipo de lote;
IV -
organização territorial da área, por meio de plano de parcelamento ou cooperativo, incluindo:
a)
locação de estradas
de acesso, de penetração e caminhos vicinais;
b)
divisão em lotes e forma de execução
de respectivo piqueteamento.
V - Inclusão,
nos núcleos-sede de distritos e colonização, dos seguintes serviços
e equipamentos:
a)
instalações, incluindo residências destinadas ao pessoal técnico-
administrativo e aos
trabalhadores em geral;
b)
serviço educacional de níveis
elementar e médio; assistência médico- hospitalar, recreativa e religiosa;
c)
cooperativas mistas agrícolas,
incluindo instalações para beneficiamento dos produtos, máquinas, instrumentos e material agrícola
em geral para revenda aos parceleiros;
d)
campos de demonstração,
multiplicação e experimentação destinados a culturas ou criações próprias
da região ou de outras econômicamente aconselháveis, incluindo lotes-padrão segundo
orientação contida no projeto.
VI - Inclusão nos núcleos,
quando agregados a distritos de colonização, de um centro
comunitário abrangendo:
a)
serviço educacional de nível elementar;
b)
pôsto de saúde
ou ambulatório;
c) cooperativa para atendimento aos parceleiros.
VII -
Os núcleos de colonização quando instalados em áreas isoladas, deverão conter o mínimo compatível com os serviços
essenciais previstos no projeto respectivo, ao nível do distrito.
É
de se notar mais uma vez que, sob a ótica da organização dos espaços, os dispositivos dessa lei são poucos e estão
por demais ultrapassados, no que se refere
às exigências para a elaboração de um plano ou projeto de ocupação de terra.
Para
confirmar tal assertiva, basta conhecer a Lei 6.938, de 31 de agosto de 1991, que “Dispõe sobre a Política
Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos
de formulação e aplicação, e dá outras providências” e obriga, de modo genérico, a que todas as intervenções no meio ambiente
sejam precedidas de estudos
para determinar seus impactos ambientais.
Leitura acessória para algum trabalho
nessa direção é a da Lei N. º 9.985,
de 18 de julho de 2000, que institui o Sistema Nacional de Unidades
de Conservação da Natureza.
MÉTODOS
Os assentamentos no Brasil nunca tiveram métodos para seu planejamento
ou gerenciamento. Na teoria, o documento que mais se aproximou dessa
aspiração, e aqui há uma forte opinião pessoal, foi a
Metodologia para Programação Operacional dos Projetos de Assentamento de Agricultores, documento
oficial do INCRA,
escrito por uma equipe interdisciplinar em 1970, capitaneada por Dryden de Castro Arezzo,
que prevê doze programas a serem seguidos
para a implantação dos
chamados projetos.
Na
introdução, os autores fazem uma “análise sumária” dos assentamentos promovidos pelo Incra e seus órgãos
antecessores, indicando “que as técnicas de
preparação e o conteúdo desses projetos constituíram, muitas vezes, real obstáculo à incorporação de um número
significativo de famílias, com um custo compatível
com os recursos disponíveis no País. O processo de preparação foi moroso e caro; a densidade, por unidade de
área ou por família beneficiada, foi exagerada; não se deu valor à participação dos beneficiários. Houve desvinculação
entre os responsáveis pela elaboração e os encarregados da implantação; as projeções de custos e
benefícios nem sempre representam a realidade local.”
Nota-se que, ao conceito de densidade, é dada uma importância
significativa, talvez pela primeira vez nos escritos oficiais sobre a matéria.
Entre
os “Problemas Especiais do Empreendimento” listados, está a dispersão espacial, com o seguinte comentário: “Além
de engajar número de pessoas, essas, frequentemente, estão dispersas em vastas áreas, por vezes de condições
físicas diversas, o que dificulta os contatos e torna complexa a administração do Projeto.”
Os doze programas propostos são divididos em dois grandes
grupos:
I. Atividades de responsabilidade direta
ou de execução determinada do Incra:
01.
Distribuição de Terras - obtenção
dos recursos fundiários, passando pela avaliação e indenização de suas benfeitorias, até a titulação
provisória e definitiva;
02.
Organização Territorial - locação
dos elementos físicos do projeto e a demarcação das parcelas, lotes e áreas públicas;
03.
Administração do Projeto -
instalações e aparelhamento administrativos com
integração a outras instituições;
04.
Assentamento - inscrição, identificação ou seleção
de beneficiários, localização das famílias nas parcelas, sistema
de organização social e treinamento;
05.
Unidades Agrícolas - definição e
estabelecimento das unidades agrícolas e assessoria técnica;
06.
Infra-estrutura Física - trabalhos
preliminares e implantação da infraestrutura básica.
II. Atividades indiretas
ou promocionais:
07.
Educação - Levantamentos preliminares, equipamentos, elaboração de programa didático
e implantação das escolas;
08.
Saúde e Previdência Social - levantamentos preliminares, elaboração de plano de ação
e implantação dos programas;
09.
Habitação Rural - Levantamento das necessidades e execução das obras;
10.
Empresa Cooperativa - Levantamento das necessidades, constituição da empresa e instalação da empresa;
11.
Crédito - Levantamento das necessidades e implantação do sistema de crédito
rural;
12. Comercialização - Levantamento das necessidades e equipamentos.
No capítulo sobre a Organização Territorial, é recomendado que essa
seja “projetada com base nas
recomendações dos estudos de solos” e que deve
estabelecer os diversos usos para as diversas áreas: “áreas para
agricultura, pecuárias ou exploração
hortigranjeiras, áreas sem utilidade econômica, áreas destinadas aos
serviços, áreas de reserva ou de
uso coletivo etc.”
Também
fica determinado que, “sendo um plano de organização resultante da atuação
de especializações distintas
(agrônomos, geógrafos, arquitetos, economistas), é necessário que, sem ingerência de um setor no
outro, haja, em todas as fases de
sua concretização, estrita e ininterrupta colaboração desses profissionais entre si”.
Obviamente, não é isso que acontece
na realidade, em razão de maus gestores, assim como de visões e interesses corporativistas.
No
capítulo que trata da infraestrutura, duas anotações chamam a atenção. A primeira, sobre “uma tendência negativa
para que a infra-estrutura física se constitua
no ítem de maior pêso nos custos de um Projeto de Assentamento, ocasionando todo um elenco de fatores
impeditivos a uma rápida consolidação dos empreendimentos”.
Na
outra, uma recomendação, esta, sim, muito inconsequente, que estabelece: “Deverão ser elaborados projetos técnicos
apenas para obras que exijam certo grau
de tecnicidade, como o sejam obras de arte, sistemas de irrigação e drenagem, eletrificação rural, abastecimento de água etc. As demais
deverão ser expeditas, aproveitando, sempre que
possível, os recursos locais”.
A pergunta
é: os planejadores devem sobrepor
a afoiteza das vaidades políticas
e o cumprimento das metas governamentais em detrimento da qualidade das obras,
fazendo-as sem planejamento?
No capítulo sobre a educação, há uma diretriz no sentido de que “a escola deverá
abranger um raio de 2,5 a 3Km, sendo levados em consideração os
acidentes topográficos e a densidade
da população.”
Na
verdade, não é um raio geométrico de influência, mas uma distância de influência, um máximo no qual uma criança
não pode exceder para chegar à escola.
E isso perde parcialmente o sentido, com o uso do transporte escolar, que muitas vezes é mais econômico do que
os investimentos e a manutenção de escolas rurais para poucos alunos.
Tanto é que Camargo reescreveu a diretriz para a Transamazônica, da seguinte forma:
“As distâncias serão avaliadas em ‘tempo’ e não em ‘quilômetros’. Dependendo do grau de desenvolvimento da sociedade projetada
(portanto, de
sua renda “per capita”), teremos o meio de locomoção que a maioria
deverá usar. Daí a avaliação das distâncias por
‘tempo’. Para as crianças que freqüentam o Curso Primário,
deverá ser prevista
a locomoção a pé. A distância “casa-escola” (primária) deverá ser de 1 a 15 minutos e a distância
“casa-escola” (secundária) de 1 a 30 minutos (locomoção a cavalo, charrete,
carroça, bicicleta, jipe, camioneta,
caminhão, etc. conforme o estágio tecnológico e econômico dos habitantes).”
Só não se pode concordar
que as crianças do curso
primário devam se deslocar a pé,
pois não há razão para isso.
O
programa denominado Habitação Rural define seu objeto da seguinte maneira:
“A habitação, sendo uma estrutura física condicionada pelo homem, que
inclui a área em redor (dependências e benfeitorias), bem como o equipamento material
e cultural que nela se encontra, também pode ser entendida como meio de produção”.
Já
naquele tempo, entendia-se a importância de prover o assentado com um mínimo de condições para a sua
sobrevivência, com ênfase em uma moradia adequada. Também
o termo habitação extrapolava as paredes da casa, embora
ainda estivesse aquém do conceito de habitat.
Importante registrar
que, mesmo tendo o documento
recebido elogios em diversas
reuniões técnicas nacionais e internacionais, nas quais se discutiu o assentamento de trabalhadores rurais, ele
nunca foi efetivamente usado nem seguido pelo INCRA. Nem sequer atualizado.
Praticamente
abandonado, foi substituído por portarias, instruções, instruções especiais, instruções normativas, normas
de execução, que sempre tratavam
de partes do processo de
assentamento e sem uma ligação entre elas, sem levar em consideração o universo do empreendimento. Aparentemente, foram elaboradas por pequenos grupos
restritos a poucos tipos de profissionais.
Apenas para ilustrar o parágrafo anterior,
temos a Norma de Execução/INCRA/DT/n° 69, de 12 de março de
2008, que “Dispõe sobre o processo de criação e reconhecimento de projetos de assentamento de Reforma Agrária.”
Nesse
instrumento, atualmente em vigor e revogando todas as disposições em contrário, praticamente são tratados
apenas os procedimentos burocráticos para a criação dos assentamentos.
Assim como nessa Norma, as demais também são insuficientes para um processo de planejamento, mesmo não
rigoroso, e nem tocam nos aspectos fundamentais da organização dos espaços.
OBTENÇÃO DE TERRAS
Quando se planeja
a construção de uma usina hidrelétrica, a área a ser alagada
é objeto dos mais variados estudos, para se evitar,
ao máximo possível,
os danos à natureza e à cultura humana. Sua
totalidade é levantada cartograficamente e suas
características são registradas com o maior rigor científico possível, para servir
como base de estudos e intervenções futuras.
Os animais são capturados, cadastrados, eventualmente marcados fisicamente e libertados em áreas semelhantes, onde possam sobreviver, ou seja, também eles são sujeitos de um assentamento. As iniciativas são tomadas,
nesse contexto, sempre em suas defesas.
Durante a formação do reservatório, equipes do setor ambiental
percorrem em barcos a área em alagamento, salvando
os animais em risco, em uma operação
geralmente denominada Mymba Kuera, em tupi-guarani, traduzida para
“pega- bicho”.
Os
vegetais também são pesquisados. Colhem-se mudas, sementes, criam-se viveiros para reflorestamentos e, a
depender da conveniência, transplantam-se as espécies, mesmo as de grande porte.
Se
houver pessoas, busca-se remanejá-las, com o menor trauma possível, para áreas onde possam continuar suas vidas em
condições iguais ou melhores do que as anteriores.
Também
ocorre a exploração arqueológica, para se ter máxima certeza de que nada importante será encoberto pelas
águas. Mesma preocupação é destinada a
obras merecedoras de figurar no patrimônio histórico e artístico, assim como os monumentos naturais.
Tudo
isso é feito por equipes de zoólogos, veterinários, médicos, botânicos, engenheiros florestais, ecólogos, antropólogos, arqueólogos, sociólogos, arquitetos, assistentes sociais e de outros profissionais.
Enquanto isso, outras equipes
multidisciplinares projetam o futuro do empreendimento, prevendo
o potencial do novo cenário,
considerando a possibilidade de inúmeras atividades que possam gerar riquezas, como subprodutos do investimento.
Os
cento e vinte mil hectares alagados na barragem de Itaipu, por exemplo, receberam
esse tratamento e muitos acadêmicos ainda reclamam, com autoridade,
que os cuidados não foram satisfatórios. Devem existir tesouros científicos submersos ou perdidos, como
resquícios históricos de populações antigas.
Entretanto, há um senso comum entre todos os conhecedores dos procedimentos: esses cuidados são fundamentais, imprescindíveis.
Justamente para efeito de comparação, é bom registrar
que os órgãos brasileiros, que tiveram ou têm a obrigação da obtenção de terras para colonização
ou reforma agrária, já desapropriaram, arrecadaram ou adquiriram terras para a criação de assentamentos para trabalhadores rurais,
em escala de milhões
de hectares, sem nenhum estudo ambiental prévio completo, o que é grave.
Geralmente, as terras, antes de desapropriadas, foram vistoriadas com o objetivo
principal de se estabelecer o valor das indenizações, de se buscar
o “justo preço”,
o que não é nem de longe suficiente para um planejamento amplo e criterioso, já que muitas
propriedades apresentam componentes que fogem ao conhecimento dos profissionais convocados
costumeiramente para essas tarefas, como é o
caso de áreas com potencial turístico, construções e sítios de valor
histórico, reservas de valor
ecológico etc. E quando isso foi levado em consideração, foi feito de forma empírica e amadora, já que
os órgãos não contavam em seus quadros
com profissionais em números suficientes ou competentes para tanto, nem mesmo
para demandar corretamente os serviços de terceiros.
Iniciativas tímidas
foram deflagradas, de poucos anos para cá, mediante convênios entre os órgãos governamentais e
entidades mais qualificadas, mas sem
resultados significativos até o momento. O objetivo maior tem sido o de se obter uma licença ambiental, formal, para
cada assentamento, uma espécie de salvo-conduto para a intervenção.
Retornando
ao problema de fato, basta olhar em fotografias
de satélite os estragos feitos pelos
assentamentos rurais para se ter uma noção, e ainda superficial, dos prejuízos
causados por essa temporária, espero,
falta de planejamento e de responsabilidade. Os
prejuízos ambientais e culturais são continentais,
semelhantes aos causados pelas abusivas lavouras e pastagens extensivas dos agronegócios e dos latifúndios, quando no uso da técnica
de terra arrasada.
Essas destruições foram crimes de lesa-pátria ou, pior, crimes contra a humanidade, para se gerar estatísticas e impressões favoráveis aos governos e, claro, vantagens materiais para alguns.
O
estabelecimento de projetos em fronteira agrícolas, caso da Amazônia atual, deve ser feito de forma muito mais criteriosa e com todo o planejamento possível, pois seu
custo econômico é extremante vultoso, seu custo social é desumano e seu custo ecológico é inimaginável.
Muitos alegam que um relatório de impacto ambiental, como determina a legislação,
emperraria a distribuição de terras, vista como solução para sérios problemas
sociais.
Entretanto, se voltarmos os olhos para o Estatuto da Terra,
encontraremos a indicação do
procedimento desejável, em seu Art. 34, que consigna: “O Plano Nacional de Reforma Agrária, elaborado
pelo Instituto Brasileiro de Reforma Agrária
e aprovado pelo Presidente da República, consignará necessariamente: I - a delimitação de áreas regionais prioritárias;”
Tomando-se uma grande área com potencial de reforma, seria viável um estudo mais profundo, feito por profissionais competentes, e, certamente, traria subprodutos
para aumentar a chance de sucesso do empreendimento, assim como facilitaria os processos das vistorias anteriores à desapropriação.
Em
resumo, o imperioso planejamento não ocorre, inclusive, devido a posturas com chancela oficial,
fruto do corporativismo das carreiras de estado, ou da falta
de atenção, de acompanhamento e de crítica
das esferas superiores do Governo Federal.
É o caso do Manual de Obtenção de Terras e Perícia Judicial do INCRA, aprovado pela Norma de Execução Incra / DT n.º 52, de 25 de outubro de 2006, que, ao contrário da Metodologia citada anteriormente, escrita por uma equipe com diversos tipos de profissionais, foi elaborado por uma equipe técnica com 4 engenheiros agrônomos, um bacharel em direito e um economista da carreira de fiscal de cadastro, apoiada por mais 7 engenheiros agrônomos e um economista da carreira de fiscal de cadastro, e coordenada por outros dois engenheiros agrônomos.
Dessa forma, não haveria
como o documento ter uma ótica abrangente e equilibrada nas diversas áreas de conhecimentos humanos, embora cite, pontualmente, informações diversas, relativas às atribuições de outras categorias profissionais, em especial na
sua página 15, quando trata do roteiro para o diagnóstico
regional.
Para exemplificar a desproporção da atenção dada a cada matéria, das
treze páginas dedicadas à orientação
de como se fazer a caracterização geral da região
de influência do imóvel, onze são voltadas para assuntos agronômicos, como descrição e classificação do relevo, classificação pedológica, uso agropecuário do imóvel, efetivo
agropecuário e outros, ficando apenas duas páginas para todo o “resto”, tratado,
obviamente, de forma superficial e insuficiente.
Também no capítulo “Aspectos
Ambientais”, em forma de confissão
da exclusividade, está a
recomendação de que “o técnico deverá buscar
material bibliográfico adequado
ao tratamento do assunto,
bem como da legislação pertinente e atualizada”.
O documento determina, ainda, que o “levantamento
preliminar de dados e informações sobre
o imóvel rural
será materializado no LAF”, que significa Laudo Agronômico de Fiscalização.
O documento principal
é acompanhado de dois anexos “Metodologia para determinação das classes de capacidade de uso das terras” e “Caracterização e quantificação das categorias de novilhos e novilhas
precoces”.
Também
um terceiro anexo, denominado “Avaliação de Imóveis Rurais”, segue o mesmo diapasão,
relacionado à ótica da profissão
predominante na Autarquia, como também à importância da propriedade como bem de capital.
Em resumo, não é razoável supor
que os assentamentos tenham sucesso
em outra área que não seja a da produção agropecuária e,
apenas, quando isso acontece de fato, às
vezes até de forma espontânea. Isso já considerando os obstáculos que surgem no processo de execução, como a
falta de recursos materiais, humanos e financeiros, afora outros percalços, como a desapropriação de áreas inadequadas ao fim proposto.
É de se registrar que o planejamento físico da área, quase sempre
sofrível, acontece somente depois de
sua obtenção. E isso, quando acontece. O fato de muitos assentamentos terem evoluído satisfatoriamente é devido quase unicamente ao empenho
dos agricultores ou de
suas organizações.
Não
vamos aqui condenar a profissão do engenheiro agrônomo, fundamental para o desenvolvimento do país, assim como
todas as outras. O que deve ser condenado é, com as devidas desculpas
pelo neologismo, o “profissiocentrismo” de qualquer profissão e em qualquer área
do conhecimento humano, pois é um vício característico daqueles reprováveis em qualquer método científico.
ESTRADAS
As estradas existiam na América mesmo antes de seu descobrimento. Eram trilhas, usadas pelos indígenas, não
limitadas por fronteiras ou propriedades formais.
Talvez houvesse algum respeito à localização de tribos ou às áreas de perambulação das etnias. Capistrano exemplifica o fato: “Se recordarmos que os Guaianases-Guarulhos-Maramumis freqüentavam as estradas de Facão e Passa-Vinte, antes
dos Bandeirantes para lá terem dirigido suas hordas, teremos
uma ideia de seu papel histórico: antes de Garcia Ribeiro haver
desbravado o Paraibuna e transposto a
balança da águas entre o Paraíba e Guanabara, não podia, quem do rio quisesse
ir aos descobertos auríferos, tomar caminho diferente.” (Pág.246)
A óbvia carência
de estradas carroçáveis também foi óbice para os colonizadores,
assim como hoje o é para muitas populações rurais. Sobre a localização dos engenhos, Werneck
registra: “As condições
de localização exerceram um papel relevante, tanto maior quanto mais recente
o empreendimento. Entre duas concessões, admitidos iguais os outros fatores,
era mais valiosa aquela que
estivesse mais próxima do litoral ou tivesse melhor acesso a este...
Não era nenhuma específica fascinação marítima que os levava a isso, mas a exigência conseqüente à
extrema precariedade das técnicas de transporte, no tempo”. (Pág.73)
Lembra aquele autor que também as terras próximas dos rios navegáveis
eram preferidas. “O mar era a porta do mercado, já que não havia mercado
consumidor na Colônia”, complementava.
Com
a tração animal, as estradas passaram a ter traçados diferentes, mais adequados ao tipo de transporte, em razão
da diferença de mobilidade entre homens e animais, como se pode deduzir das informações, tal qual a de Capistrano: “A estrada de Sorocaba a
Porto Alegre e ao território das Missões teve
sua importância quando vinham às feiras dezenas de milhares de bestas, mas sua influência durou pouco e esvaiu-se
com a introdução do vapor”. (Pág. 269)
Os condicionantes para o desenho
dos caminhos seguiam,
claro, a economia
da época, como também
Capistrano registrou: “...à medida que a margem baiana do São Francisco ia sendo aproveitada, se tornava maior a
distância da cidade de Salvador
e seu recôncavo, onde existiam
os principais consumidores de gado. A condução deste beirando o São Francisco
até a foz, e daí acompanhando o oceano,
ficava cada vez mais penosa e demorada; impunha-se a serventia de caminho
mais rápido.” (Pág. 273)
Mais do que hoje, segundo
o mesmo livro, os caminhos
“oscilavam naturalmente antes
de fixar-se, e assim
não é fácil apurar qual foi seu primeiro rumo”.
E, nesse livro, continua
a atenção sobre a vida das estradas:
“Em geral formava-
se uma linha muito sinuosa
que evitava as matas onde o gado não encontraria o que comer; as
serras onde as chuvas mais freqüentes produziam, às vezes, florestas luxuosas com as de Orobó, os
desfiladeiros arriscados, as catingas mais bravas,
as travessias órfãs d’água.”
(Pág. 275)
Quem
já participou ou presenciou a abertura de estradas, com a derrubada das florestas, sabe que isso traz um perigo de morte para os que ali estão,
a malária, se a região
for sujeita a esse tipo de endemia.
No
passado, a situação deve ter sido muito mais cruel e ter inibido muitas iniciativas ou modificado muitos trajetos.
Ainda em 1802, segundo Capistrano, escrevia
Vilhena, provavelmente Luis dos Santos Vilhena: “...a travessia que vai de Moritiba até o Sincorá é talvez um dos caminhos piores
por que pode transitar- se por ser ainda deserto
e doentio, onde morrem de sezões inumeráveis viandantes, sendo preciso trazerem água e bebida quinada”. As
dificuldades de traçado das estradas
também foram agravadas pela defesa da propriedade privada.
Sobre
a província de São Paulo, Sérgio Buarque e outros registraram: “Em todo êsse período o desenvolvimento das vias
de comunicação interna e externa figura com realce entre as cogitações dos governos da província, o que seria
de esperar dado o interesse que apresenta para a grande
lavoura.
A principal
dificuldade estava em que se todos queriam
estradas, poucos toleravam que passassem estas em suas
terras. Judiciosamente nota em 1830 um parecer do Conselho da Presidência:”
‘Que
não se arruinem frutos pendentes he de suma Justiça; mas que deva dar volta huma Estrada por que encontra hum
Canaveal, seria outra injustiça ao Publico,
pois todos sabemos que na maior parte desta Provincia os Lavradores de cana tem necessidade de mais extensos
terrenos por que onde este anno se colheo
cana, hé preciso deixar o terreno de pouzo para poder n’elle plantar dahi a 6 ou mais annos.’
Como se pode ver, a construção ou modificação de uma estrada
envolve diversos fatores que,
se ignorados, causam problemas, levando décadas para serem resolvidos.
Caso
clássico é o da Rodovia Transamazônica. Segundo os economistas, uma estrada deve ligar um polo produtor a um
polo consumidor e melhor ainda se a relação
for de mão dupla. A Transamazônica, na época, ligava uma região que não produzia a uma região que não
consumia. Não poderia ter bons resultados a curto ou médio prazo,
como não teve.
E,
também por falta de técnica, seu traçado foi executado de forma leiga ou leviana.
Não é possível determinar a veracidade desta afirmação, mas, na época
de sua construção, o Incra era dirigido
por uma grande quantidade de topógrafos e, por isso, essa ciência
exercia grande peso nas decisões,
até mesmo influenciando outros profissionais.
Aliado à afobação de se iniciar a obra, daí a preferência pelas linhas
retas e ângulos retos,
tanto no traçado
das estradas, como nos limites
das parcelas e de áreas
urbanas.
Assim,
em toda a região norte, há exemplos desse tipo de estrutura viária que, posteriormente, se apelidou de “espinha de
peixe” ou “quadrado burro”, ou seja, uma malha de estradas
vicinais feitas em prancheta, com régua e esquadro, sem mapas
de apoio satisfatórios e, consequentemente, sem considerar a geografia local e outras singularidades. Partiam da
ideia sempre errada de que a área era praticamente um tabuleiro, com pouca ou nenhuma declividade, sem obstáculos naturais
e mesmo tipo de solo em toda a sua extensão.
Esse procedimento é extremamente oneroso,
pois, como não se evita os acidentes naturais, termina exigindo
aterros, às vezes gigantescos, e muitas obras de arte estradeiras, como pontes e bueiros. A depender da movimentação do relevo e do traçado escolhido, o
preço de uma estrada vicinal em região de mata
fechada pode decuplicar, deixando o referencial histórico de US$ 10.000 / Km (dez mil dólares por quilômetro), para
chegar próximo a U$ 100.000 / Km (cem mil dólares por quilômetro).
Apenas como ilustração, consta no livro Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Holanda: “A ordem que
aceita não é a que compõem os homens com trabalho, mas as que fazem com desleixo e certa liberdade; a ordem do
semeador, não a do ladrilhador. É
também a ordem em que estão postas as coisas divinas e naturais pois que, já o dizia Antônio Vieira, se as estrelas
estão em ordem, “he ordem que faz
influência, não he ordem que faça lavor. Não fez Deus o Céu em xadrez
de estrelas...”,
Segundo
Camargo: “Os gastos com a infra-estrutura rural (estradas vicinais, demarcação de lotes rurais,
construção de Agrovilas), se considerados isoladamente, serão quase sempre
anti-econômicos, devido à dificuldade de ressarcimento
dessas despesas através dos colonos. Essa situação piora muito se os colonos
não forem rigorosamente selecionados.” (Pág.
24)
Para aumentar a dramaticidade da situação, o corte de rios, riachos,
drenagens, cria muitas poças d’água que servem como viveiros
de mosquitos, principalmente os dos transmissores da malária.
Entre
outras preferências, as estradas vicinais devem seguir os divisores de água, para que as chuvas e as enxurradas
não comprometam seu uso, pois, afinal,
é isso, juntamente com o transporte pesado (de madeiras, por exemplo), que mais estragos causam nas pistas de
rolamento. E, também de preferência, deve-se evitar o
ultrapasse de bacias
hidrográficas.
Esse traçado
é também conhecido como a “estrada
do burro” (não é o quadrado burro!), pois lembra os trajetos usados
pelo transporte asinino, criado com praticidade,
visto não existirem, na época, aparelhos topográficos modernos disponíveis. A tendência do animal é a de
buscar deslocamentos confortáveis, devido à lei natural do menor esforço.
É certo que, nos anos oitenta, principalmente em Rondônia, as estradas começaram
a ser planejadas com o uso de fotografias aéreas,
interpretadas com o aparelho denominado estereoscópio, que permite
a visualização aérea
de uma área em três
dimensões.
Inicialmente,
se identificava a hidrografia da região, tendo como apoio as cartas geográficas da Diretoria do Serviço
Geográfico do Exército - DSG e do Projeto Radam-Brasil. Assim, eram obtidos
os divisores de água, por onde preferencialmente passariam as estradas.
Também eram desenhadas as parcelas, com frente para a estrada
e o fundo ou a
lateral para as aguadas.
O tempo mostrou
o acerto desse planejamento, em razão da vida útil apresentada pelas obras, bem como o seu baixo custo de execução e manutenção.
Adicionalmente, podiam ser escolhidas as áreas destinadas aos núcleos urbanos.
Hoje, com a disseminação das imagens de satélite, esse tipo de tarefa ficou bem mais fácil e precisa.
Entretanto, muitas estradas de projetos de assentamentos ainda são
feitas a partir de desenhos
elaborados por pessoas inabilitadas, com régua e esquadro, sem apoio de mapas, dentro de gabinetes. Isso devido ao imediatismo de dirigentes sedentos por
apresentar metas políticas a seus superiores e ao público, com as mais inválidas desculpas,
como a de que os assentados não gostam de parcelas em formas de polígonos, diferentes do quadrado ou retângulo,
pois não conseguem identificar os limites de suas propriedades. “Como em todo o problema de desenho, não
existe nenhuma receita que tenha validade
absoluta”, afirma Juan Luis Mascaró
em seu livro Loteamentos Urbanos.
E acrescenta no contexto em que escreveu: “Como regra geral,
deve-se escolher a posição e a direção
de todas as ruas, de forma a ter declividade suficiente para escoar as águas da chuva. Para isso,
obviamente, deverão ser posicionadas, cortando as curvas de nível”.
(Pág.25)
A afirmação acima vale especificamente para loteamentos urbanos,
pois as ruas,
além de apresentar pavimentos impermeáveis, são acompanhadas por sistemas de captação de águas pluviais.
A receita não serve, de forma cega, para as convencionais estradas, em
zonas rurais, chamadas de vicinais.
Mascaró faz análise semelhante em outro livro,
Infraestrutura Urbana, lembrando que, para a infraestrutura que depende da gravidade
(pavimentação, esgoto e drenagem pluvial), “a declividade do terreno (topografia) é muito importante para seu traçado
e para o custo total da urbanização, já que ela representa de 65% a 75%
do custo total.” (Pág.182) Também na área rural, o planejamento das estradas
deve ser feito
com respeito à topografia e, também, representa um alto custo na implantação do assentamento,
como já foi afirmado anteriormente. A par
disso, mesmo que a taxa de motorização das famílias seja baixa, como o é tradicionalmente, a estrada é
imprescindível para o deslocamento das pessoas
e para a retirada da produção.
Continuando o que está contido no mesmo volume citado, diz o autor:
“Como toda via urbana deve permitir o
escoamento das águas da chuva de forma superficial, ela deve possuir
uma declividade que sempre deverá
ficar acima dos mínimos recomendados...”
E alerta: “Por outro lado, declividades exageradas produzem erosão...
Ainda, as que ficam acima de 5%
dificultam o tráfego de veículos, por isso que declives acentuados só são admissíveis em vias secundárias.” (Loteamentos – Pág. 105) Na lista de tipos de estradas
apresentada pelo Engenheiro, consta um com pavimento
do tipo “Pedrisco sem penetrar”, que parece ser assemelhado ao tradicional revestimento usado nas estradas vicinais
dos projetos de assentamento.
Para essas estradas, a declividade mínima vai de 0,6 a 0,8 %, enquanto,
a máxima, de 6 a
8%.
Segundo
as Normas do DNER para classificação funcional das vias urbanas (1974,
p.4), a rede viária
urbana é dividida em quatro sistemas específicos:
- Sistema Arterial
Principal
- Sistema Arterial
Secundário
- Sistema de Vias Coletoras
-
Sistema Viário Local
No Manual
Técnico para Estradas
Vicinais, elaborado pelos engenheiros civis do INCRA, está descrito: “Para efeito de hierarquização da malha viária dos projetos
de assentamento, ficam estabelecidos os seguintes padrões
de estradas: Alimentadora e Penetração.”
“O
padrão alimentadora será empregado nas vias principais dos projetos de assentamento, tais como os acessos aos
núcleos comunitários, enquanto o padrão penetração será adotado nas vias
secundárias ou de menor utilização.”
As características técnicas da estrada do tipo
“Alimentadora” são os seguintes:
Faixa de domínio
de até 30 metros;
Faixa de desmatamento de até 20 metros;
Plataforma com largura de até 9 metros para os casos
de greide colado
e de até 7 metros
para o greide elevado;
Largura da pista de
rolamento de 6 metros;
Revestimento
primário em toda a largura e extensão da pista de rolamento, com 0,10 m de espessura mínima,
depois de compactado, ou apenas em pontos críticos;
Rampa máxima de 20%.
E a do tipo Penetração:
Faixa de domínio
de até 30 metros;
Faixa de desmatamento de até 15 metros;
Plataforma com largura de até 7 metros para os casos
de greide colado
e de até 6 metros
para o greide elevado;
Largura da pista de
rolamento de 4 metros;
Revestimento
primário em toda a largura e extensão da pista de rolamento com 0,10 m de espessura mínima, depois de compactado, ou apenas em pontos críticos; Rampa máxima sem limite.
“Independente
do padrão a ser empregado, os serviços de construção deverão ser os mais simples e econômicos possíveis, especialmente os de terraplenagem,
empregando-se o greide colado, salvo quando as condições topográficas não
permitirem.” (Pág. 6)
As estradas,
enfim, têm a importância da coluna vertebral em um assentamento, com todas as suas curvas naturais.
Entretanto, deve ser levada em consideração a oportunidade de se fazê-las,
principalmente em regiões de florestas.
Isso porque,
em muitos casos de
assentamentos fracassados, as estradas somente serviram para madeireiros
retirarem as árvores de valor comercial. Em
verdade, pagou-se caro pela
destruição.
PARCELAMENTO
Em princípio, o tamanho de uma parcela
rural deve ser aquele que permita a uma família sobreviver, usando da força de
seus componentes ao longo do ano, com eventual
ajuda ou contratação de terceiros. Naturalmente, isso pressupõe a geração de uma renda que mantenha um nível
de vida digna a toda a família. Está implícito
na afirmação o pensamento de que o essencial não está na forma, mas no objetivo de se resolver o problema
social. De acordo com o Estatuto de Terra, a parcela deve se enquadrar
no tipo da “propriedade familiar”. É, praticamente, um postulado.
Também
em princípio, esse tamanho deve ser o resultado de uma equação que considere a qualidade do solo, o nível de conhecimento técnico
dos agricultores, suas capacidades de investimento, a
demanda dos mercados consumidores e outras
variáveis conjugadas em um estudo normalmente denominado “modelo de exploração
agrícola”.
Como
o próprio nome diz, isso é apenas um modelo. No projeto, deve-se levar em consideração a natureza local. Por
exemplo, se o modelo concluiu por parcelas de 15 ha e a região é montanhosa, uma parcela que contenha declividades acima das estabelecidas por
lei precisa ter uma área total muito maior, para que
sua área agricultável tenha os 15 hectares líquidos.
Também a disposição dessas parcelas deve ter uma correlação com as estradas
e os núcleos urbanos, para evitar os insucessos do empreendimento em
razão de grandes distâncias físicas
aos serviços e às relações
urbanas. A rigor, isso já não
deveria acontecer nos dias de hoje, se fossem considerados inúmeros exemplos, até de séculos passados, como os
relatados por José de Souza Martins: “Uma outra implicação da desorientação inicial
dos funcionários e colonos respeita à aquisição de lotes
urbanos e rústicos. Ao que tudo indica, a intenção
governamental era a de centralizar a vida do núcleo colonial numa espécie
de aldeia, supondo
assim transplantar ou proteger os padrões europeus
de existência comunitária e instaurar aqui,
assim, a pequena
agricultura no estilo
que lá se observava (daí a preferência por imigrantes do norte da
Itália, nessa fase). Nesse caso, o imigrante deveria
adquirir um par de lotes: um urbano
e um rústico, como aliás ocorreu em São Bernardo. Houve mesmo uma
tendência inicial em favor dos lotes
urbanos: em São Caetano, no ano de 1879, achavam- se medidos e demarcados 26 lotes urbanos e 22 rústicos. Como no
entanto, os lotes urbanos
localizavam-se na sede da fazenda, para aproveitar a afluência dos caminhos e os edifícios já existentes
(casa grande, capela, senzalas), deu- se
que alguns lotes rústicos ficaram muito distantes da sede do núcleo colonial. Em 1900 um morador não podia prestar
serviços ali devido à distância. Em São Bernardo, os colonos
eram obrigados a permanecer ‘nos seus lotes rurais durante a
semana, a fim de não perderem tempo com a ida e a volta do lote urbano para o outro, que fica um tanto
longe’. Por isso, ao invés de associarem o
lote urbano ao rústico, os imigrantes fizeram opções entre um ou outro. Os 43 lotes do núcleo de São Caetano estavam,
em 1879, divididos por 35 famílias, das quais ‘três
possuem simultaneamente lotes urbanos e rústicos; 15 preferiram urbanos, havendo
cinco que ocupam
dois prazos cada uma; e 17 estabeleceram- se em lotes rústicos. Em conseqüência, quase metade dos colonos
ficou com terrenos de tamanho reduzido.
Os lotes urbanos tinham 4.840 m² cada um, ou
0,484 ha, e os rústicos
151.250 m² cada, ou 15,125 ha. Sendo uma tarefa (12 x 12
braças igual a 696,96 m²) o que um homem pode trabalhar em um dia, vê-se que os lotes urbanos não foram medidos de maneira a absorver
o trabalho de uma família
durante o ano todo, não sendo assim possível retirar
deles a subsistência. Em resultado, pouco
depois, ‘algumas famílias
possuidoras de lotes urbanos pretendem lotes rústicos, e outras requerem
aumento dos lotes rústicos que ocupam para si ou para
parentes que esperam da Europa’.” (Pág. 105)
O referido historiador aduz que todas as informações foram tiradas de relatórios, artigos
de jornais e outros documentos da época.
Quanto aos “parentes que esperam da Europa”, até hoje, são comuns as reclamações
de que as parcelas, mesmo as bem dimensionadas, não permitem a divisão no espólio ou na doação
em vida, ou seja,
não permitem que os filhos,
quando crescidos e casados, tenham um pedaço dessa mesma terra para sobreviver.
Em resposta a isso, pergunta-se, com bom humor, se o propositor
pretende o retorno ao tempo das capitanias
hereditárias.
A
afirmação de que uma tarefa é quanto um homem pode trabalhar em um dia deve ter levado em consideração o uso de
equipamentos manuais e, talvez, tração
animal. Embora não tenha sentido repetir o mesmo raciocínio, em muitos modelos de exploração agrícola destinados
aos assentamentos de agricultores humildes,
ainda hoje, a base de cálculo se faz considerando o uso de enxada, um dos instrumentos agrícolas mais antigos
e ultrapassados da humanidade, praticamente
banido na agricultura moderna, exceto para pequenos trabalhos pontuais.
Buarque também se reporta aos problemas de parcelamento de terras: “Escaparam dêste quadro apenas
as regiões de Santa Catarina
e do Rio Grande do Sul em que foi instaurado o regime de
‘pequena propriedade’. Os colonos açorianos
de Santa Catarina, na maioria agricultores pobres das ilhas, foram localizados em lotes pobres e
mal distribuídos;...
‘Nesta Capitania’, relata o Marquês
de Lavradio, ‘nunca os Governadores consideraram que deveriam repartir terras
e estabelecer famílias
que ùnicamente na Ilha (de Santa Catarina), não fazendo
caso nenhum da terra firme, sendo ela quanto
a mim a mais importante. A Ilha a repartiram por tal modo que todos ficavam
desacomodados, porque na exceção de alguns poucos,
aos mais deram
porções de terras muito pequenas, e muitos ficaram
ser ter nenhuma.”
(Pág. 476) Não foi definido no texto qual o tamanho
da pequena propriedade nem porque estavam
mal ou bem distribuídas, mas, em seguida, houve uma comparação: “No Rio Grande do Sul, houve melhor
distribuição dos lotes e, como havia maiores
disponibilidades de terra,
os colonos puderam
aumentar mais fàcilmente as propriedades”.
Diretamente
relacionada com o parcelamento e em atendimento à moderna legislação florestal está a decisão de se
deixar reservas no interior das parcelas ou
em uma única porção do assentamento, na forma coletiva, em bloco, como se costuma
denominar.
A reserva
coletiva, mais racional,
tem a vantagem de permitir
melhor refúgio para os animais,
inclusive os polinizadores, essenciais para muitas atividades
agrícolas. Entretanto, a cultura brasileira ainda não está perfeitamente amadurecida para as ações cooperativas, o
que dificulta a aceitação desse tipo de organização, bem como de sua manutenção, ou sua exploração, naquilo que permite
a lei.
O projeto
do parcelamento, das reservas e o projeto
dos núcleos urbanos
devem ocorrer simultaneamente, assim como os outros programas, conforme já preconizava Camargo: “A orientação e a
elaboração do Planejamento Urbano- Rural
devem ser entregues a uma equipe técnica especializada: urbanistas, economistas, agrônomos, geógrafos,
geólogos, sociólogos, engenheiros-civis, arquitetos,
engenheiros-sanitaristas, médicos, advogados, assistentes-sociais, técnicos
em educação, psicólogos etc.” (Pág. 7)
Peter Hall, em seu livro Cidades do Amanhã, vai mais além, tratando do significado da expressão "planejamento urbano": “Quase todos, a partir de Patrick
Geddes, concordariam que o referido
conceito deveria incluir
o planejamento da região que circunda a cidade; muitos,
novamente encabeçados por Geddes e a Regional
Planning Association of America, ampliá-lo-iam, fazendo abarcar a região natural, ou seja, uma bacia fluvial ou
uma unidade geográfica com cultura
regional própria”.
O caso mais emblemático de planejamento urbano,
em projetos de assentamento,
foi o da Rodovia Transamazônica, relatado por Camargo, na publicação denominada Urbanismo Rural, que
assim se define: “Estudando como dar
ao campo os benéficos das cidades, chegamos à conclusão de que deveriam ser adaptadas ao meio rural as
técnicas urbanísticas utilizadas na cidade,
pois os problemas são os mesmos, diversificados apenas quanto à densidade
demográfica e às atividades econômicas principais. Nessa adaptação
chegamos ao ‘Urbanismo Rural’ ou ‘Planejamento Urbano-Rural’.” (Pág. 2)
É bom reforçar a ideia de que o homem,
seja na área urbana, seja na área rural, tem as mesmas necessidades e, portanto,
deve receber o mesmo tratamento, no
que se refere ao atendimento de suas necessidades, compatíveis com a modernidade. Isso é preceito constitucional e humanístico.
Entretanto, de acordo com o nosso
modo de ver, “urbanismo rural”
não existe. O nome já apresenta
uma obvia contradição.
Já
a denominação “planejamento urbano-rural” não apenas é mais adequada como corrobora a ideia de uma organização
espacial que considera todo o universo trabalhado.
Isso fica mais explícito, inclusive, em parágrafo
posterior do mesmo texto: “Urbanismo Rural ou Planejamento Urbano-Rural, (Ruralismo ou Ruralística) é o planejamento social, econômico e físico do meio rural, determinando o “zoneamento”,
o “uso” e o “dimensionamento” das áreas rurais, tendo em vista os Recursos Naturais
e a distribuição racional e seletiva dos Recursos Humanos
necessários para criar e promover
o desenvolvimento social,
cultural e econômico
das comunidades rurais.”
(Pág. 7)
Um
aspecto marcante desse trabalho foi a classificação dos núcleos urbanos: “Para melhor atender às necessidades
sociais, culturais e econômicas do meio rural, idealizamos três tipos de ‘Urbs’ rurais:
a Agrovila, a Agrópolis e a Rurópolis, formando uma hierarquia urbanística segundo a infra-estrutura
social, cultural e econômica e tendo cada qual a sua função
específica.” (Pág. 10)
Interessante e elogiável é notar que, na essência
do planejamento, havia um forte
respeito à educação, principalmente à das crianças, daí a razão das
muitas configurações como a seguir:
“A população da Agrovila varia conforme o tipo de escola a ser projetado. Este procedimento justifica-se porque
não tem sentido projetar
uma comunidade tão pequena que não possua um número de habitantes suficientes para que seja criada uma escola primária
capaz de funcionar
economicamente e em bases pedagógicas. A menor comunidade urbano-rural deve ser aquela que possa ter uma escola primária
capaz de funcionar
economicamente e em bases pedagógicas. Partindo da população
infantil chegaremos à
população total da Agrovila. O número de crianças em idade escolar
(curso primário – idade de 6 a 11 anos)
corresponde, geralmente, a 12% ou 14% da população. Desta forma a
Agrovila deverá ter de 500 a 1.500 habitantes, ou seja, 100 a 300 famílias. No entanto, na colonização da Transamazônica,
em algumas Agrovilas, a população infantil escolar chega a ultrapassar a 60% do número total de habitantes.
Desta forma, a primeira etapa de
implantação de uma Agrovila pode ser planejada para mais ou menos 50 famílias,
mas com previsão para futuro
crescimento.” (Pág. 14)
Pelos números, nota-se que a proposta fica divorciada da realidade.
Entretanto, a ideia de que é necessária uma população mínima
para se implantar os serviços essenciais, vale para muitas
outras atividades, como a saúde,
o comércio etc.
Embora o estudo tenha perseguido
a constituição de lotes rurais e, na verdade, para-rurais nas áreas urbana, para os agricultores e outros trabalhadores, isso apresenta uma certa contradição, cuja discussão fica iniciada: “Nessa concepção, cada colono possuía
um lote de produção econômica e um lote urbano na Agrovila para residência e agricultura de complementação de subsistência. Entretanto, quanto mais evoluído
o processo de exploração agrícola
ou pecuária menos
os colonos têm necessidade de praticar a agricultura de complementação de subsistência, isto porque num estágio econômico
mais adiantado existem
os lotes rurais
econômicos de produção
intensiva, o que aumentará a produção por ha, a produção por investimento e tornará mais baixo o custo dos produtos agrícolas ou pecuários. Por exemplo, um colono que se dedica à produção
econômica e intensiva
de “citrus” ou à exploração de agricultura florestal
ganhará o suficiente para seu sustento,
sem necessitar de lavoura para sua subsistência ou de criar galinhas, porque os outros
colonos que se dedicarem ao plantio de feijão, arroz,
batata, etc., (em grande escala)
e à criação intensiva de galináceos podem lhe vender seus produtos
por preços inferiores ao custo de uma produção
doméstica, de fundo de quintal.” (Pág. 14) Já no final do trabalho, percebe-se que o chamado
planejamento urbano não passa muito
da condição de um
modelo conceitual, aproximando-se muito do já citado
“quadrado burro”, em razão da descrição: “Cada Módulo de Colonização tem formato retangular, com a base de mais ou menos
50 km, paralelamente ao eixo da rodovia Transamazônica e os lados de mais ou menos 14 km, situados perpendicularmente à estrada, penetrando
nas margens em direção ao interior.” (Pág. 27)
Modelos conceituais não são estranhos ao mundo do urbanismo e, para
essa confirmação, basta a lembrança
das cidades-jardins. Na verdade, os erros cometidos foram o de considerar o
desenho conceitual como planejamento e a decisão de implantá-lo a fórceps. Assim, os problemas
descritos no caso das
estradas se repetiram
quando do parcelamento e do desenho
urbano, principalmente nos arruamentos.
Como ilustração, podemos citar um modelo de sapato, de conceito
respeitável no mundo da moda. Ele
pode até servir para um determinado tamanho, por coincidência, mas certamente não servirá para os demais tamanhos
de pés. Sobre o urbanismo em áreas rurais,
são muitos os que defendem
a ideia de algo específico, dirigido para uma
realidade que, aparentemente, é diferente da realidade urbana.
Claro, há diferenças em razão das diferentes densidades, dos tipos de produção também diferentes, como há diferenças
entre cidades de grande porte e de pequeno
porte, com características rurais. Porém, no caso de planejamento de núcleos urbanos, estejam esses onde
estiverem, os estudos devem se amparar nas mesmas técnicas urbanísticas conhecidas e aceitas,
considerando-se, obviamente, as peculiaridades locais.
É o caso da lembrança de Camargo: “Nenhum
centro urbano pode ser atravessado por uma estrada. Quanto
maior o centro
urbano, mais afastado
deve estar das rodovias.” (Pág. 27)
Isso
pode parecer simplório, mas ocorreu muito nos projetos de assentamento sem planejamento adequado,
nos quais surgiram
núcleos urbanos espontâneos ao longo de suas estradas. Logo, as aglomerações se
desenvolveram nos dois lados da
futura rodovia, o que passou a exigir altíssimos investimentos em viadutos, túneis, passarelas, após o custo
humano de pessoas acidentadas por atropelamentos ou choques de veículos.
Apenas
como ponto de reflexão, é interessante observar que, no caso dos projetos de núcleos urbanos, mesmo
elaborados por profissionais, o cemitério sempre
é item esquecido, assim como o estabelecimento de locais para casas de tolerância, os prostíbulos. Vale um
estudo sobre essa razão! Mas aqui não é o
lugar para se discutir as técnicas urbanísticas, pois seria um aprofundamento desnecessário e repetitivo de outros estudos mais apropriados.
De
fato, o importante é estabelecer que, a par de existirem aspectos típicos em cada um dos milhares de projetos de
assentamento espalhados por todas as regiões do país, ainda
considerando essa heterogeneidade, pode-se afirmar que a maioria
deles seguiu o padrão de um parcelamento com propriedades individuais, com reservas florestais internas, estradas sem planejamento satisfatório e sem urbanização minimamente aceitável.
Isso não significa que tais áreas continuam apresentando esses vícios
até hoje, pois boa parte perdeu a
vocação agrícola e se urbanizou, ou mudou das mãos dos assentados para as de empresários, ou se tornou um conjunto
de sítios de recreio; enfim, houve
intervenções que não podemos afirmar, conclusivamente, se foram positivas ou negativas, do ponto de vista econômico e
social. Há estudos científicos
favoráveis e desfavoráveis, geralmente muito influenciados por convicções ideológicas. E, por isso,
perdem muito a credibilidade, se o seu objetivo não é
anunciado de forma clara.
ASSENTAMENTO TRADICIONAL
A organização física dos assentamentos é induzida pelos valores
culturais de seus mentores.
Esses
valores tradicionais vão desde o romantismo de se ter sítios de recreio, quando se sonha reunir os amigos para um
churrasco no fim de semana, criar animais
de estimação, despertar com o canto do galo, até o mais arraigado sentimento da propriedade individual
ou familiar.
Na verdade,
o desenho loteador
tradicional, que privilegia as propriedades individuais,
característico da maioria dos assentamentos, quase uma camisa de força,
muitas vezes carrega
aspectos indesejáveis para o sucesso
do empreendimento, para o uso
racional do espaço, para a felicidade de seus
moradores, para atendimento ao interesse público.
Quando se fraciona uma área, a perda do espaço útil cresce de forma inversamente proporcional ao
quociente da divisão.
Para exemplificar, vamos tomar dois sítios, um com 100 hectares e 5.000 metros
de perímetro (2.000m x 500m), outro com 25 hectares e 2.500 metros de perímetro
(1.000m x 250m).
Se,
no primeiro, for feito o habitual acero, que é a limpeza do solo ao longo das cercas,
por todo o perímetro, com largura de um metro,
a perda de área útil será de 0,5%.
No
caso do segundo, o mesmo costume redundará em uma perda de 1%, o dobro.
Em uma parcela, isso pouco significa, mas, em milhares
delas, a área que deixa
de ser produtiva se torna lamentável. Entretanto, não seria essa
variável tão comprometedora se não estivesse aliada a outras.
Uma residência localizada em uma parcela não é compacta.
Ela necessita, além do
edifício, de uma área também acerada, o conhecido terreiro, para evitar a aproximação de animais nocivos
ao homem, mormente
os peçonhentos. Dificilmente se encontra uma casa rural
rodeada por forrações por conta disso. Essa área, mesmo em pequenas propriedades, pode ultrapassar facilmente os
1.000 metros quadrados.
Some-se
a isso os caminhos e estradas, as áreas mal ocupadas por falta de orientação técnica, as ocupadas por
árvores de porte, mesmo frutíferas, como as mangueiras sem finalidade comercial, cujos custos, só de ocupação,
ultrapassam os benefícios, e ter-se-á uma perda significativa de área que poderia ser destinada
à agricultura ou pecuária.
Em sua monografia, denominada
““Avaliação do Processo de Implantação de Assentamentos Rurais
no Entorno do Distrito Federal”, Valéria Andrade Bertolini lembrou que, “No censo agropecuário do INCRA de 1996, a distribuição das formas de exploração dos beneficiários constava
de 86,59% individual, 8,03% mista e 5,38%
coletiva. (Pág. 46)
E,
sobre o objeto principal de seu trabalho, o Assentamento Menino Jesus, localizado no município de Unaí, em Minas
Gerais, registrou que nos 935,6809 hectares
de sua área, há 29 parcelas com aproximadamente 19 hectares cada. A média da área plantada
nas parcelas era de 3,8 ha, da área para pecuária era
de 9.04 ha e 9,58 ha de área apenas desmatada para plantio, o que pode
ter ocorrido ou não (Pág. 99). Esses
dados se referem a um momento após 6 anos da criação do projeto.
Em conta simples, observa-se que pouco mais da metade das áreas são utilizadas para a agropecuária e,
certamente, com baixo grau de produtividade.
O fato de ser um assentamento com propriedades individuais mal administradas, por conta do nível social
e econômico de seus proprietários, não é a única razão
para o insucesso.
Outros
problemas são as diferenças de condições dos lotes, no que respeita à distância
dos serviços urbanos
(estando esses na área comunitária do assentamento ou em
cidade próxima), acesso às aguadas, qualidade dos solos etc.
Alguns
desses óbices também foram detectados na tese citada: “Apesar de o assentamento se encontrar cercado por
mananciais, a dificuldade de acesso à água envolve
a maioria dos lotes. As principais dificuldades existentes correspondem à distância dos mananciais, qualidade da água, pequena
vazão e falta
de energia para a colocação de bombas e motores.”
(Pág.139).
Por conta
desses aspectos, surgem
conflitos entre os assentados, como também informou: “Os moradores dos lotes 20 e 21
- de famílias da região - barram o acesso
à água da nascente ao morador do lote 22 - devido a pequena vazão - mas liberam-no a seu parente do lote 17,
exercendo domínio político sobre o espaço e a
água.” (Pág. 138)
E acrescentou ainda que “Entre as dificuldades enfrentadas pela
distância, a moradora do lote 26
encontra-se isolada dos parentes – durante a entrevista alegou se sentir só e sem vizinhos para conversar. No caso da
família de Veredão Campinas (lotes
13, 27 e 28), o pai (lote 13) passa mais tempo no lote dos filhos, deixando o seu
lote subutilizado.” (Pág.137)
Ainda
tratando das desigualdades na distribuição das terras em geral, no caso de regiões com madeiras comerciais, ocorrem
parcelas com muitas espécies caras, verdadeiras minas de ouro, e outras já completamente desmatadas. Com o desuso de área útil, todos perdem, pois
a construção e manutenção da infraestrutura
destinada ao apoio da produção, como as estradas, os armazéns, as feiras livres,
são pagas pelos recursos públicos.
A contrapartida desse investimento e desse custeio
tem que ser a produção
regular, o que não acontece.
É evidente também que a propriedade individual é presa mais fácil da especulação
imobiliária. Todos sabem que há uma rotatividade indesejável na posse das parcelas dos assentamentos e
isso não pode ser evitado por leis, decretos
ou campanhas educativas. Quando há vontade das duas partes, a dos compradores e a dos vendedores, a
transação é inevitável. Como resultado, a finalidade
social se perde e voltam a aparecer as grandes propriedades, cujas partes são adquiridas por pequeno preço,
apesar de a desapropriação, muitas vezes, ter sido
feita a peso de ouro.
A perda de área útil ocorre também
fora das parcelas, a começar da necessidade de muitas estradas
e de núcleos urbanos.
No
caso do Assentamento Menino Jesus, há dois núcleos, sobre os quais Bertolini
fez as seguintes
considerações:
“Bem localizada, com água e estruturas da antiga fazenda,
a área da sede, desde a
época de acampamento, estava definida como área coletiva de todas as famílias. Situada num local central, de
fácil acesso a todos os lotes e à água do córrego
Vereda da Cobra, possui duas construções da antiga fazenda, a casa sede e uma casa de caseiro, que podem ser
utilizadas para atividades que beneficiem
todas as famílias. Porém, no parcelamento, foram deixados apenas 2ha. de área coletiva. Mais da metade das
famílias do grupo 2 considera a área quadrada e pequena”. (Pág. 147)
“A
área comunitária do núcleo de moradias pertencente ao grupo 1 foi definida com a implantação do núcleo. As famílias do grupo discutiram com os técnicos
a forma, tamanho e localização
da área. Fixada em local central (onde o cerrado estava desmatado), retangular, com 4ha. e de fácil acesso às famílias do grupo
1. Sua implantação seguiu a lógica de núcleo de moradia, no
centro a área comunitária com as casas (situadas nos lotes) ao redor. No local, atualmente, há um campo de futebol
improvisado e uma construção provisória, onde as famílias
se reúnem, além dos tubos do poço artesiano.” (Pág. 148) A expectativa
das famílias, no que respeita
ao conteúdo desses núcleos, fica por conta de necessidades reais e de vontades diversas,
muitas vezes de difícil consecução: “As
demandas apresentadas pelas famílias durante a entrevista para as duas áreas são: a construção de posto de saúde,
igreja, telefone, escola, local para reuniões,
horta comunitária, horto medicinal, campo de futebol, área de lazer, áreas de plantio
comunitário, máquinas e locais para beneficiamento da produção
e o “embelezamento”
das áreas. O único elemento que difere é a discussão de um curral para festas de
vaquejada e rodeio na área da sede (proposta das famílias do grupo 2 visando a obtenção de recursos para o grupo),
mas as próprias famílias admitem que a área da sede é pequena para
tanto.” (Pág. 149)
Obviamente, se for atendida a vontade das famílias, a infraestrutura e as construções serão onerosas, tanto na
execução quanto na manutenção, bem como terão
alto grau de ociosidade. Se não forem atendidas, haverá
alto grau de frustração social.
E, também preocupante, como existem muitas áreas reservadas para construções públicas
e comunitárias, sem recursos para realizá-las, o desperdício dos espaços
agrava-se.
A propósito, embora
seja importante escutar
os beneficiários, durante
o processo de planejamento, isso deve ocorrer
de forma cautelosa, de modo próximo
ao que Camargo propôs: “Os Planejadores devem
auscultar os camponeses sobre seus problemas e suas aspirações, mas a
participação campesina na Planificação deve
ser relativa para não se tornar instrumento de políticas demagógicas. O cirurgião quando trata de um paciente não
vai se informar com este sobre a técnica
operatória, porém irá utilizar seus conhecimentos para curá-lo. A equipe de Planejamento deve proceder como os
médicos, auscultando os colonos, diagnosticando as causas de seus males e oferecendo tecnicamente as soluções
adequadas.” (Pág. 8)
Por conta de custos, face à baixa densidade demográfica, o saneamento
básico também é de difícil
implementação e, sobre isso, recorremos novamente ao testemunho da autora que tratou do Assentamento Menino Jesus: “O assentamento é um exemplo
da dificuldade de realização de saneamento no
meio rural, com 52% das famílias sem destino adequado
para os dejetos sanitários e o restante,
48%, empregando o modelo rudimentar de fossas secas.
A falta de água encanada é fator que dificulta a utilização de pia,
tanque e, principalmente, do vaso sanitário.” (Pág. 149)
De seu estudo, conclui
o que serve para a maioria dos assentamentos tradicionais: “Sendo um pequeno
assentamento de reforma agrária, cercado de
grandes fazendas, distante da sede do município e/ou outro centro
consumidor, sem transporte para
escoamento da produção, o Assentamento Menino Jesus encontra-se atualmente
fadado à subsistência.” (Pág. 149)
E percebe-se, ainda, outro aspecto que pode também ser generalizado:
“Aliado ao sustento que se obtém do
lote, os recursos para manutenção da família – a renda – são obtidos por meio de fontes externas
como aposentadoria ou aluguel (17%)
e o desenvolvimento de atividades fora da parcela
(73%); poucas famílias
conseguem se manter apenas do lote (10 %).” (Pág. 178) Como aspecto positivo, se tem a impressão de que as ideias do cooperativismo crescem
entre os agricultores de baixa renda:
“Durante o questionário, assentados levantaram a necessidade do desenvolvimento de atividades cooperadas, como a
aquisição de maquinário para beneficiamento da produção, roça e horta coletivas, compartilhamento de pasto e outros. (Pág. 169).
Maria Cândida Teixeira
de Cerqueira, em sua monografia “A Assistência Técnica nos Habitats do MST e o Papel do
Arquiteto e Urbanista”, descreve um dos assentamentos
por ela estudado, o Eldorado dos Carajás, no Rio Grande do Norte: “A área do assentamento compreende
cerca de 880,66 ha. Deste total, 187,15
hectares (equivalente a 20%) são destinados à área de reserva legal. Outros 70 hectares representam a área de
preservação permanente dedicada ao
rio Pitimbu, que corta parte da extensão do assentamento. A esta, somados mais 20,40 hectares,
correspondentes aos demais
elementos naturais, chega-se
à área de preservação
permanente total, sendo igual a 90,40
ha. Existem também a linha de
transmissão elétrica da CHESF e o gasoduto da Petrobrás, cada qual abrangendo uma faixa de domínio com área aproximada de
quatro hectares. No mais, 65,27
hectares equivalem à área coletiva, dividida em dois trechos, e 16,74 hectares à agrovila. As estradas internas
equivalem a 16,60 hectares. O
quantitativo restante, 505, 83 hectares, encontra-se distribuídos em 80 lotes de 6,32 hectares cada,
destinados à produção agropecuária desejada.”
(Pág. 105)
A área coletiva significa 0,8 ha por família, ou seja, pouco mais de
10% da propriedade familiar total. É
um tipo de propriedade mista, mas não tão mista assim.
“A produção agropecuária no assentamento se volta para a subsistência
das famílias, tendo destaque o plantio de mandioca e criação de animais de pequeno porte. Para tanto, os assentados utilizam
o lote de trabalho, complementando com o quintal
do lote de moradia.” (Pág.106)
Conta-nos a autora sobre os lotes residenciais localizados na chamada
Agrovila. “As dimensões dos
lotes correspondem a 30m x 60m, espaço que a maior parte dos assentados utiliza com plantio e criação de animais para
subsistência, além da moradia.
A maioria dos lotes, no entanto, ainda apresenta espaço
livre.” (Pág. 108)
Essa situação
foi fotografada após dez anos da criação
do Assentamento.
Aduz,
a Arquiteta: “Em sua maior parte as habitações foram construídas com material
de baixa qualidade, o que pode ser constatado pelos problemas estruturais, como rachaduras e trincas nas
paredes e piso, além de problemas nas esquadrias e madeiramento do telhado” (Pág. 109), confirmando a incompetência dos órgãos governamentais no trato da questão.
Sobre os equipamentos comunitários, foi dito: “No assentamento os equipamentos sociais
de uso coletivo existentes são: Igreja Evangélica Assembléia de Deus; Igreja Adventista; Igreja Católica; campo de futebol;
agroindústria; cocheira adaptada como local de reunião e casa sede. Com exceção dos três primeiros, os demais
correspondem a elementos edilícios remanescentes da antiga
fazenda.” (Pág. 111)
Se, em inúmeros casos, os projetos
de assentamento demonstram ser antieconômicos,
por falta de estudos que considerem custos e benefícios, a implantação de núcleos urbanos
em suas áreas tornam a ação mais inconsequente ainda.
Isso
em razão de que um assentamento pode necessitar apenas da terra, estradas
vicinais e demarcação topográfica, enquanto uma cidade,
mesmo pequena, vai demandar toda uma
infraestrutura urbana (asfalto, redes de água,
de esgoto, de iluminação pública), com preço muito acima do gasto com o assentamento inicial.
Outro
aspecto a ser considerado nesse modelo tradicional é o da atração que a cidade exerce sobre os indivíduos, no
mesmo sentido da expulsão que projetos mal planejados e mal executados induzem a essas migrações.
Camargo
exemplifica: “Em 1956, estudando as causas do fracasso de antigos Núcleos
Coloniais Oficiais, notamos
que os colonos que se retiravam dos Núcleos,
não eram os mal sucedidos mas, pelo contrário, os que progrediam financeiramente e que desejando também
progredir socialmente mudavam-se para
uma cidade, comprando um bar ou montando qualquer negócio que lhes possibilitasse viver em ambiente mais
adiantado, onde encontrassem meios de proporcionar melhor
educação e instrução
para seu filhos.”
(Pág. 2)
Sua avaliação desse comportamento migratório tinha o seguinte
componente: “Observa-se esse ‘isolacionismo’ nas populações rurais mais atrasadas, enquanto até mesmo o índio, compreendendo o valor da vida em
sociedade, procura se agrupar e
construir suas tabas que são as “comunidades” indígenas. Entretanto, a Urbanização Rural poderá beneficiar também a classe rural menos
favorecida, erradicando-a do isolacionismo e procurando integrá-la na
faixa produtiva da nação.
Mas, superar a decadência de muitas décadas
é tarefa difícil,
principalmente com relação à população adulta, além do que há indivíduos incapazes por deficiências pessoais, as
quais devido à vida segregada tendem a se agravar.” (Pág. 5)
E concluía: “Pode-se
medir o grau de desenvolvimento de um povo pela taxa de urbanização que possui.” (Pág. 24)
Aceita
como verdade a afirmação acima, os assentamentos tradicionais são vetores que perpetuam o subdesenvolvimento
da realidade rural, caso outras variáveis não os
tire dessa condição.
Outra razão para se ter o desenho tradicional nos assentamentos é a interpretação equivocada do conceito de agricultura familiar.
A
briga filosófica na área dos problemas fundiários brasileiros, que pouco ou nada interessa à população urbana - maioria na atualidade demográfica de nosso país - se dá entre
os defensores do agronegócio e os da agricultura familiar.
O
agronegócio é acusado de destruir grandes extensões da natureza, de usar excesso de pesticidas, de desviar
indevidamente as águas para irrigação, de plantar
sementes transgênicas, de gerar pouquíssimos empregos, de desprezar a importância de produzir alimentos para
o povo brasileiro, gerando apenas “commodities”.
A
rigor, afora os problemas ambientais, que podem ser evitados mediante a aplicação dos conhecimentos, a produção em
escala é desejável, desde que planejada
e organizada, restando apenas o principal
dos problemas: a má distribuição da renda. Ilustrando, no agronegócio atual, uma família
fica milionária e centenas morrem de fome.
Para se contrapor a esse modelo, muitos defendem ardorosamente a
chamada agricultura familiar, que também tem seus traços negativos.
O
grande universo das pequenas propriedades familiares apresenta alguns aspectos
incômodos. Em muitas,
os atuais ocupantes
vivem como seus tataravôs,
em uma economia de subsistência, que não permite a evolução econômica
e social de seus membros.
Em muitas,
também, as crianças
vão para a lida nas lavouras, junto
com os pais, perdendo dias preciosos de sua infância
e de ensino nas escolas.
Os adolescentes,
imprescindíveis para a força de trabalho familiar, perdem seus anos dourados e, também, chances de
evoluir nas muitas outras atividades humanas.
Embora as pequenas propriedades tenham, geralmente, uma produção agrícola
diversificada, sempre estão sujeitas às imposições de mercado, sendo comandado
por intermediários ou mesmo por indústrias que estabelecem os preços para os produtos que adquirem. É o
caso dos laticínios, dos abatedores de animais, das indústrias de tabaco etc.
Eli
da Veiga, no artigo Fundamentos do Agroreformismo, da coletânea História Rural e Questão Agrária, cita Gleen
Johnson, um economista estadunidense, que
pretendia sepultar a agricultura familiar, em favor da agricultura patronal: “Por um bom tempo o povo deste país esteve
preocupado com as substituições das
carinhosas mercearias por frias cadeias de supermercados. No entanto, os velhos
quitandeiros foram finalmente substituídos (mesmo que não inteiramente) pelos gerentes e funcionários de modernos hipermercados. Tendo
em vista que a fibra moral e outros aspectos
da sociedade americana não foram alterados
por essa transição, não se
pode concluir, a priori, que a sociedade americana seria necessariamente prejudicada por uma reestruturação de nossa
agricultura que colocasse a produção nas mãos dos grandes fornecedores de insumos, processadores, distribuidores ou das
corporações. Na verdade, esse tipo de reestruturação
poderia significar, simplesmente, que o trabalho agrícola viria a ter retornos compatíveis com aqueles que são captados
pelo resto da economia. Se isto vier a acontecer, esse tipo de
reestruturação – da mesma forma que o abandono das queridas mercearias – pode constituir uma boa coisa”.
Com propriedade, Eli da Veiga mostrou que o estímulo do governo à
agricultura familiar ocorreu
em vários países,
inclusive nos Estados
Unidos, nas últimas
décadas, o que é uma medida acertada para os tempos modernos, tanto no sentido
de política econômica, como de política
social.
Entretanto, nas entrelinhas do discurso de Gleen Jonhson,
há algumas verdades
incontestes, como o fato de que toda sociedade busca
o progresso e isso, muitas
vezes, significa mudanças.
Se conjugarmos a importância do progresso, da evolução
da sociedade, no caso, mediante
o aumento da produção e da produtividade no campo, com a imperiosa obrigação de se diminuir a miséria ou a pobreza
dos agricultores brasileiros, uma opção pode estar no equilíbrio entre as opiniões, com a criação
de algo como um “agronegócio familiar”.
Nada espetacular! Seria a ocupação
das terras ociosas
do mesmo jeito,
mas com mais profissionalismo e melhor visão de futuro,
banindo para sempre
do cenário brasileiro a figura do Jeca Tatu, personagem emblemático de Monteiro Lobato.
OPÇÃO AO ASSENTAMENTO TRADICIONAL
"Quem quiser fazer uma torta de maçã, partindo da estaca zero, primeiro, precisa criar o universo."(frase atribuída a Carl Sagan)
Uma opção ao assentamento tradicional pode ser identificada a partir das tendências da história moderna.
Não
é nenhum absurdo afirmar que o homem é um animal gregário e que a urbanização é um processo crescente e irreversível.
Também não é absurdo
afirmar que a tendência das produções humanas
é a de obedecer ao
princípio da especialização, pela absorção dos conhecimentos e das técnicas modernas.
Pode-se
até dizer que a arte é a exceção que confirma as regras gerais, pois essa não obedece
a nenhuma lei, em
seu universo de liberdade absoluta.
Outro
princípio a ser observado é o da prevalência do aspecto coletivo sobre o individual, visto que o primeiro protege
o segundo. O contrário não é verdadeiro, embora em nenhum
dos dois casos a verdade seja absoluta.
Com base nesses pressupostos, pode-se estabelecer alguns passos para racionalizar a criação de assentamentos rurais,
não como um novo modelo,
mas como um rearranjo do que
se costuma fazer, para se ter coerência com a frase em epígrafe.
Obviamente,
a primeira condição é a de se ter o melhor domínio possível do ambiente a ser tratado, ou seja, em
palavras de hoje, elaborar o diagnóstico ambiental,
o relatório de impacto ambiental, ou qualquer nome que venha a substituir a ação.
Esse
estudo envolve muitas variáveis e tem se mostrado impraticável devido à grande quantidade e pulverização dos
assentamentos pelo território nacional, à burocracia
para a contratação de empresas especializadas, à urgência exigida pelas famílias já acampadas na área a ser
desapropriada e ao desprezo que os dirigentes públicos em geral dispensam à matéria.
Uma
inspiração pode vir do conceito de “área prioritária para a reforma agrária”, qual seja, assim que fosse identificada uma microrregião homogênea
com potencial de propriedades
passíveis de obtenção, toda ela seria objeto de um diagnóstico, um trabalho
em escala. Como suas características são semelhantes,
poucos seriam os aspectos exigentes de detalhamento nas áreas eleitas
para arrecadação, desapropriação, aquisição.
Além de atender à legislação e à boa técnica, o trabalho certamente
serviria como adiantamento ao modelo
de produção agrícola, ao planejamento físico do empreendimento etc.
Não
é necessário lembrar que o bom-senso deve prevalecer. Não teria sentido fazer um estudo desses em uma microrregião
de dezenas de milhares de hectares,
cujo potencial de desapropriação não ultrapassasse uma centena de hectares.
Paralelamente
a isso, um estudo socioeconômico da região seria bem-vindo também,
para apoiar a elaboração do modelo de exploração agrícola
e para o
planejamento das medidas de inclusão social das famílias, novas e
antigas, em seu novo habitat.
Decididas quais as áreas deveriam
ser objetos de assentamentos, uma observação
definidora seria a da análise das distâncias às cidades ou vilas próximas.
Para
efeito de exemplos, vamos estipular dois casos extremados: uma área distante
mais de cem quilômetros de uma cidade que ofereça
razoáveis serviços públicos e outra que esteja a menos de 30
quilômetros de um núcleo urbano, mesmo que esse disponha de serviços incipientes.
O primeiro
caso é clássico da colonização e vai exigir
a construção de um núcleo
urbano para apoiar as famílias dos agricultores. Como já foi dito, essas
cidades devem ser planejadas e
executadas de acordo com as técnicas urbanísticas usadas em quaisquer
outras, considerando as peculiaridades da região e de sua provável alteração.
Uma vantagem
da construção de uma cidade
é que o investimento beneficia
não apenas aos assentados
rurais, mas a uma quantidade de famílias muito maior que residirá e prestará serviços na área urbana.
Complementarmente, será um mercado consumidor próximo aos
produtores rurais.
Para
outro exemplo dentre centenas, podemos citar o município do Lucas Rio Verde, no Mato Grosso, que surgiu de um assentamento para 200 famílias
e hoje conta com aproximadamente 50.000 habitantes.
No segundo
caso, mais típico da reforma
agrária, comum em regiões já adensadas, não há a necessidade de novos núcleos
de apoio.
Em
princípio, núcleos comunitários exclusivos para as famílias assentadas não devem existir, pois são deficientes e não apresentam perspectiva de bom futuro. É preferível estruturar melhor uma cidade
próxima, para receber as residências das famílias
dos agricultores, estendendo, assim também, os benefícios para os demais
moradores.
Portanto,
em vez de toda a família se deslocar de sua morada solitária, para estudar, trabalhar em atividades não
rurais, para assistência à saúde, para o lazer
etc., como ocorre nos assentamentos tradicionais, apenas a força de trabalho, normalmente o chefe da família,
ou a chefe da família, se deslocará para seu local de trabalho: a área rural. Um transporte simples resolve o problema,
o que é muito mais econômico do que construir uma infraestrutura urbana
de porte para poucas pessoas.
No Estado
de São Paulo, há pessoas
que moram a cem quilômetros de seu local de trabalho
e para lá se deslocam
todo dia, de manhã, voltando
à tarde para sua casa,
de ônibus ou em veículo
próprio, por autoestradas de excelente qualidade. Nas empresas em que trabalham, existem refeitórios ou
restaurantes, áreas de lazer e descanso, ambulatórios para primeiros-socorros, ou seja, apoio para que o
trabalhador fique no local por mais de oito horas. Trinta quilômetros, ou mais,
é distância normal de deslocamento para o trabalho, na maioria das
capitais brasileiras, geralmente com desconforto e grande gasto de tempo, por conta dos péssimos meios de transporte público existentes em praticamente todas elas.
Semelhantes a isso, há muitos plantadores de soja, associados a
cooperativas agrícolas, que moram em metrópoles e aparecem em suas propriedades uma ou duas vezes ao ano, apenas para a contratação de serviços. Assim também são
os que arrendam suas terras para o plantio da cana-de-açúcar e passam
anos sem ver de perto seu patrimônio.
Tomando-se como referência o assentamento estudado
por Bertolini, vemos
que “encontra-se a 918 km de
distância de Belo Horizonte, a 268 km de Brasília e a 88 km da sede do município. Localiza-se no Distrito de
Garapuava, ao lado do lugarejo denominado Chapadinha. As ‘zonas urbanas’ mais próximas são: Chapadinha (2km),
Cabeceira da Mata (12 km) e Garapuava (28 km).” (Pág. 79). Mais adiante, acrescenta: “Todas as
crianças em idade escolar vão à escola. Estudam
em Chapadinha ou em Garapuava, sendo transportadas em ônibus escolar
da Prefeitura de Unaí.” (Pág. 104)
Se as crianças podem se deslocar diariamente, podem muito mais facilmente os adultos.
No outro caso citado, Teixeira de Cerqueira registra: “A RN 160 é a
principal via de acesso ao
assentamento. Partindo da cidade de Macaíba e percorrendo 8km nesta RN, chega-se à sua entrada
principal. Já a distância total de Natal ao Eldorado
dos Carajás corresponde a, aproximadamente, 30 km, percorridos em toda a sua extensão em estrada asfaltada
de boa procedência.” (Pág. 104) A proposta
de as moradas das famílias de agricultores acontecerem em cidades, nesses e em outros muitíssimos outros casos, é, portanto, perfeitamente factível. Isso vem a
calhar com a ideia de Mascaró, ao tratar de cidades polinucleares, que apresentam maior economia em infraestrutura: “Morar
em pequenas cidades
que formem parte de grandes redes parece ser o futuro, pelo menos entre
os países ditos desenvolvidos.”
(Infraestrutura Urbana Pág.182)
Ainda pensando sobre distâncias, a proximidade exagerada de um núcleo urbano também é perigosa, pois a área rural
pode se tornar objeto de especulação imobiliária, pela sua
transformação em loteamento urbano.
O parcelamento, ou não parcelamento, pode ser desenhado como aventado por Cardoso: “Seria,
portanto, mais lógico se partíssemos para a utilização dos lotes rurais econômicos na forma de pequenas e
médias empresas, adotando-se seleção
rigorosa para os novos proprietários a fim de que seja alcançado maior rendimento por ha e criadas comunidades
mais evoluídas. Pode-se também planejar a Colonização na base da grande empresa
rural de exploração coletiva. (Pág. 24)
No caso do aproveitamento de toda a área como uma empresa cooperativa,
as vantagens seriam muitas, em razão
da maior área útil e da economia com a utilização
de uma agricultura moderna, além da continuidade das áreas de proteção
ambiental previstas em lei.
Se a área for demasiado extensa,
pode-se ter vários
condomínios, considerando grupos
de candidatos com certa afinidade de relacionamento e cultura.
Importante
ressaltar, mais uma vez, que a propriedade em condomínio dificulta a comercialização da terra por motivos
meramente especulativos, voltando-as mais para a
desejável produção.
Certo
que, primeiramente, é fundamental os agricultores receberem cursos de capacitação voltados não apenas para as
técnicas agrícolas a serem adotadas, como para a vivência
com o cooperativismo, administração do empreendimento, comercialização de produtos etc. Com o patrocínio do Governo ou com o
empenho dos movimentos sociais, ou ambos, o sucesso
é perfeitamente possível.
Há uma forte tendência, entre os técnicos
que militam na área, a acharem que o modelo deve ocupar toda a mão-de-obra
familiar, por todo o tempo. Talvez isto seja um resquício
do antigo comportamento da elite ruralista, que sempre tentava
tirar o maior proveito possível da escravidão.
Isso
não é correto, pois os objetivos maiores devem ser a autonomia financeira dos beneficiários, independentemente de
quantas horas trabalham por dia, e o retorno
do investimento à sociedade, na forma da produção, como já foi dito. Ainda assim, é possível mesclar atividades típicas do que se chama agronegócio, como as plantações de soja, de
cana-de-açúcar, pecuária etc., e outras que exigem cuidados
pessoais intensivos, como hortas, pomares,
criação de pequenos
animais, produção de flores etc.
No que diz respeito à habitação das famílias, o gasto apenas será
transferido para a área urbana, com
vantagens de sobra, por conta do aproveitamento da infraestrutura já existente, além dos serviços
públicos e particulares.
Evitar redes de estradas
e outras obras não significa a ausência da infraestrutura na área rural, visto serem necessários edifícios, ainda que rústicos, para servirem como galpões, silos, sedes administrativas, refeitórios, ambulatórios para primeiros
socorros, ambientes de descanso, lazer, guaritas de segurança e outros.
Eventualmente,
poderão ser instaladas indústrias para o beneficiamento da produção no próprio local, se conveniente.
A dúvida contida no verbo reside no fato
de existirem produtos que, devido à economia de transporte, ou outras razões, devem sofrer a transformação em
pontos mais próximos ao mercado consumidor.
A
reforma agrária busca combater os latifúndios e os minifúndios, estes com áreas tão pequenas,
a ponto de não permitirem que delas as famílias tirem
seus sustentos. O rearranjo
aqui proposto serve para ambos os casos. Entretanto, considerando que são as regiões
tradicionais as que mais apresentam minifúndios, assim como, teoricamente, mais famílias preparadas para trabalharem na forma cooperativista, a essas, a aplicação pode ser mais adequada.
No mesmo caminho, a proposta se presta perfeitamente tanto para os
projetos implantados, como para aqueles em implantação.
E considerando, ainda, que a colonização vai buscar as últimas fronteiras agrícolas do planeta,
destruindo os últimos
biomas existentes, desejável
é que o uso do que já foi
destruído seja aproveitado da forma o mais intensa possível. Eduardo Paulon Girardi, em seu Atlas da
Questão Agrária Brasileira, demonstra a correção
dessa assertiva: ”Vejamos
o que podemos concluir da dinâmica geral
de apropriação de novas terras e o uso das terras no Brasil. Em 1998
havia na Amazônia Legal 55,8 milhões
de hectares de terras exploráveis não exploradas; segundo os dados do INPE, de 1998 até
2007, foram desflorestados na região 54,5
milhões de hectares (terras inexploráveis que se tornaram exploráveis) e entre 1996 e 2006 a área total de lavouras
e de pastagens na Amazônia Legal cresceu
23 milhões de hectares, dos quais 45% relativos às pastagens. Esses três dados nos permitem contradizer todo discurso que mencione a necessidade
de desflorestamento na Amazônia (ou em qualquer outra região) para a obtenção
de novas terras para a produção agropecuária”.
CONCLUSÃO
Ao contrário do que é dito em músicas
e histórias, não é outro animal o arquiteto da floresta. É o homem que, assim como os demais, tem o instinto
da arquitetura, mas, pela sua racionalidade, é o maior
responsável pela integridade planetária. Entretanto, é mais do que sabido,
não tem ele se importado muito com a sobrevivência das demais espécies.
O
uso racional do espaço nunca foi tão fundamental para a vida humana como no atual momento
em que o crescimento populacional descontrolado inquieta os verdadeiros
pensadores, descompromissados com interesses econômicos e diferentes de outros com pouca envergadura humanística.
Os
assentamentos humanos, em última análise, são formas de se buscar uma vida melhor ou mesmo a sobrevivência para grupos
sociais.
Porém,
sem desprezar os graves problemas sociais, é razoável supor que os assentamentos rurais não têm a importância
que muitos exageram, ao atribuir- lhes
tantas vantagens. Muito acima deles, está a prioridade de conservação da espécie
humana.
Quando
se prognostica qualquer situação, sempre se tem três cenários: o dos otimistas, o dos pessimistas e o dos realistas.
No caso do futuro de nosso planeta, os pessimistas, antipáticos, sempre condenados pelas críticas
opostas às suas manifestações, mesmo
quando falam a verdade, pensam
que o Homo sapiens já escreveu sua história futura,
a de sua precoce
extinção, diferentes dos dinossauros, menos
inteligentes, mas que estiveram por aqui por muito mais tempo do que nós, provavelmente, estaremos. Pensam que uma das mais fortes razões para isso é o crescimento desordenado das populações, que nem os governos conseguem
coibir. Em resumo,
descrevem o ser humano como um animal inviável, daí seu possível e breve sumiço,
em razão do iminente colapso
da Terra, considerando a escala temporal
de sua existência.
Os otimistas sonham que a aventura espacial encontrará novos planetas,
para onde toda a humanidade irá, quando os recursos terrenos
acabarem. Ou afirmam
que o homem se adaptará a um ambiente totalmente antrópico, sem vegetais
e animais desnecessários para seu
ego, com altíssima tecnologia e uma vida de consumo
e hedonismo para todos os bilhões de habitantes. Um verdadeiro paraíso,
sem restrições, mesmo que destruído em sua configuração atual!
Enquanto
isso, alheio a essas preocupações, um único homem, munido de uma motosserra, desmata, despreza, mata,
polui centenas de hectares de vida. Empresas também fazem o mesmo, contudo
em escala muitíssimo maior.
Grupos
ambientalistas usam de todos os recursos que podem, para evitar ou diminuir
a catástrofe. Buscam meios mais brandos, como nas iniciativas educacionais, ou mais pungentes, como nos atos denominados
imorais e até terroristas.
Entre os cenários apresentados, temos um caleidoscópio de posicionamentos políticos com previsões em relação ao futuro e, como sempre, após a oitiva, a leitura, a análise das várias correntes de opinião, assim como, principalmente, da observação dos efeitos da ação humana sobre a natureza, a visão realista é a que deve prevalecer, mesmo com relativo bom humor, a fim de contrastar com verdades cruas.
Permito-me,
portanto, um posicionamento bastante preocupante se nada mudar:
os pessimistas devem
estar certos!
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