O HOMEM DO SACO
Marina da Silva
"Senta e fecha os olhos!"
A menina largou caderno, livro, lápis, o para-casa, saltou da cadeira, sentou-se seriamente no sofá amarelo, pezinhos calçados com seus amados chinelos Rider do Mickey, fechou os olhos e estendeu as mãozinhas com as palmas voltadas para cima ansiosa para saber o que iria ganhar.
"Filha, vem cá! Senta e fecha os olhos."
Esta era a senha que a mãe usava para entregar algo inesperado e sem motivo aparente. A primeira vez a menina perguntara: "é meu aniversário?" A partir de então ficou convencionado o dia surpresa.
As duas estavam na sala; a mãe abrira a tábua de passar, dispusera as peças e cabides no sofá de dois lugares, ligara o ferro. A menina estava sentada à mesa da sala de jantar que ficava no mesmo ambiente fazendo as tarefas escolares. Antes de começar a passar as roupas a mãe soltou o "Senta e fecha os olhos!"
Nas mãozinhas foi colocada uma sacolinha.
"Pode abrir os olhos."
Muito séria a criança obedeceu, deu aquele sorriso de satisfação e agradeceu:
"Mãe, você acertou!"
Um abraço pela cintura, um beijo e afago nos cabelos e o Mas...
"Mas tem que terminar o para-casa primeiro."
E tudo voltou como no início, a mãe passando as roupas, a menina fazendo o para-casa. Ela terminou os estudos, guardou os materiais na mochila, mostrou a agenda de recados da escola e foi para seu quarto.
Tempos depois a menina retornou à sala com a surpresa nas mãos - revistinhas da Turma da Mônica de Maurício de Sousa - com uma questão:
"Mãe, quem é o homem-do-saco?"
A mãe arqueou as sobrancelhas interrogativa.
"É que o Cebolinha ouviu a estória do homem-do-saco e ficou com muito medo, voltou para casa correndo, apavorado e trancou todas as portas e janelas e deixou o pai dele preso do lado de fora de tanto medo que estava."
A mãe parou o que estava fazendo e lá foram as duas para o quarto da menina ler a estória do Maurício de Sousa.
"Esta estória do homem-do-saco filha, é estória que as famílias contam para crianças como o Cebolinha, você e todas as crianças para alertar o perigo do roubo de crianças. Pessoas más, homem ou mulher, roubam crianças em hospitais, nas ruas, na saída da escola, no parque e até em igrejas. Então a família ensina para as crianças: não fale com estranhos; não aceite nada, nenhum doce, pirulito, chocolate ou presente de estranhos sem a autorização da família; não entre em carro ou casa de pessoas que você não conhece sem avisar a família. Tem muitas estorinhas para alertar dos perigos: Chapeuzinho vermelho e o lobo mau; dona Onça e os seis cabritinhos; os três porquinhos."
"E o que acontece com a criança roubada mãe?"
"Acontece coisas ruins; somem com elas e a família nunca mais vê a criança."
O Cebolinha ouviu a estória do homem-do-saco e ficou com muito medo de ser roubado e correu para casa e foi trancando portas e janelas. Só que ele entrou pela porta da frente enquanto seu pai saia pela porta dos fundos com um saco de lixo para colocar lá fora, na rua, para quando o caminhão da limpeza urbana passar, levar o lixo para o aterro sanitário. Porém, Sr. Cebola, o pai do Cebolinha, não levou as chaves das portas da casa e descobriu que ficara preso do lado de fora tentando entrar pelas porta dos fundos e até pelas janelas que o Cebolinha havia trancado. Quando o Cebolinha viu a sombra de um homem com um saco pensou ser o ladrão de crianças. Ambas, mãe e filha, gargalhavam com as trapalhadas do Sr. Cebola e do Cebolinha.
Um dia, mãe e filha foram ao cinema assistir o filme da Turma da Mônica e se divertiram muito. Na volta para casa a mãe comprou o refrigerante preferido da menina e enquanto estavam no ponto de ônibus esperando tomavam a bebida relembrando partes do filme. A menina ganhara a camiseta do Cebolinha e estava com ela.
De repente a mão sentiu um aperto em sua mão e um corpinho se juntando ao seu. Abaixou-se apreensiva:
"O que foi filha?"
"O homem-do-saco, o homem-do-saco."
Sussurrou a menina em seu ouvido. A mãe seguiu o olhar da filha e viu um homem preto, vestes simples, subindo a avenida com um saco preto enorme às costas revistando as lixeiras e catando latinhas de alumínio pelo caminho.
"Não filha, ele não é o homem-do-saco - a mãe agachada amarrava o cadarço do tênis da menina - ele é um trabalhador que está desempregado e está catando latinhas para vender. São os trabalhadores da cata ou catadores, homens e mulheres e até idosos e crianças que catam materiais e ainda ajudam a limpar a cidade recolhendo os materiais recicláveis como papelão e latinhas para vender e conseguir dinheiro para sustentar suas famílias."
"Vamos dar nossas latinhas para ele mãe!"
"Mas que ótima ideia, vamos tomar tudo e entregar as latinhas quando ele chegar até aqui."
"E o homem-do-saco mãe? Não existe mais?"
"Sim filha, eles existem, homens e mulheres, e sempre vão existir; são pessoas ruins que roubam crianças para vender. Não são como os trabalhadores catadores e catadoras que são pessoas boas que estão sem trabalho e além de catar suas latinhas fazem de graça o serviço de limpar a cidade. Vou lhe mostrar todos que a gente vai ver pelas janelas do ônibus até nossa casa."
***
Estes homens e mulheres, jovens, idosos, crianças, adolescentes e até grávidas, catadores e catadoras são importantíssimos para as cidades, tragicamente, são trabalhadores super explorados: não tem salários nem carteira assinada e nenhum direito legal (jornada, condições salubres de trabalho, alimentação, assistência médica e odontológica),não tem contrato de trabalho; não tem previdência social, não tem um bebedouro de água nem um banheiro para necessidades fisiológicas.
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