O
CAPETA NA GARRAFA
Marina da Silva
“É mentira!” A menina de
sete anos respondeu incrédula. “A mamãe disse que é mentira. Ninguém consegue
prender o capeta numa garrafa.”
Claro que era mentira.
Ninguém pode com o capeta, o tinhoso, o coisa-ruim.
“Pois é o que eu estou te dizendo.
Eu vi com estes olhos que a terra há de comer”.
A menina respondeu ao novo
amigo que fizera na nova vizinhança no bairro Sarobá.
“Mentira pura, café com
rapadura!” Ela repetiu dando gostosas gargalhadas enquanto pulava de manilha em
manilha, imensos tubos de concretos feitos ali no almoxarifado da prefeitura
para a rede de esgoto da cidade. As crianças de mesma idade estavam fora do
cadastro escolar pela data de aniversário e passavam juntas horas inteiras no
antigo pasto de vacas catando frutas e caçando tesouros. Pitangas, amoras,
milho-de-grilo, cagaitas, goiabas, mangas, jatobás. Faziam uma matula na
própria camisa e vestido e iam degustá-las dentro das manilhas. O almoxarifado
da prefeitura era um parque de diversão imenso para brincadeiras sem fim:
carpintaria, marcenaria, britadouro, pátio dos carros e patrolas, o poço de
óleo preto tirado das máquinas, o prédio da administração, a casa do ponto e
apito e as bicicletas dos trabalhadores.
Foi numa destas aventuras
subindo em cupinzeiros, atirando pedras e virando os cágados no córrego Santo
Antônio, caçando bichos com estilingue usando mamonas como balas que o menino
veio com a conversa.
“Sabia que dona Luiza da
venda tem um capeta preso numa garrafa?”
“Sei sim. Mas é mentira
pura. Mamãe disse que é lorota de gente que não tem o que fazer.”
“Não é não. Eu fui lá
comprar cachaça para meu pai e vi com estes olhos que a terra há de comer!”
“Quando foi isso?”
“Outro dia”.
“E você não cagou de
medo?”
“Não. Minhas pernas tremeram,
bambearam. Mas só dei uma espiada rápida, de relance, para a prateleira onde
fica a garrafa com o capeta e fechei correndo os olhos.”
“Uai? Mas você viu ou não
viu o capeta dentro da garrafa?”
“Vi a garrafa.”
“E como era?”
“O quê?”
“A garrafa do capeta.”
“Ah, era igual qualquer
garrafa de cachaça, só que o capeta estava lá dentro.”
“Só acredito vendo com
meus próprios olhos.”
“Eu te levo lá, mas tem
que ter dinheiro para comprar um trem qualquer na venda da dona Luiza.
“Então está bom. Papai vai
me dar uma moeda sábado, dia do pagamento.”
Sábado chegou ensolarado e
azul e depois que a mãe deixou a menina ir brincar ela passou debaixo da cerca
de arame já ouvindo o assobio do amigo.
“Eu pedi a mamãe para ir
comprar Chupe-Chupe de abacate na dona Quininha e ela deixou.” E lá se foram os
dois saindo de fininho, rodeando o prédio do escritório, passando pela casa do
relógio do ponto, desembocando na oficina e saindo pela fresta na cerca da
frente do almoxarifado. Levantaram-se
batendo a poeira da roupa e descendo a rua com ares inocentes, cumprimentaram
dona Colodina que conversava muito alegre com dona Carmem que trazia ao colo o
bebê recém-nascido. Daí eles atravessaram a rua e entraram num caminho estreito
ladeado por mato e o olho-d’água de um lado e do outro pelo extenso muro do
quintal da dona Quininha, passando na frente da casa de dona Carlota benzedeira
indo dar de frente com a vendinha de dona Luiza. Iam serelepes, fingindo
despreocupação, ver o capeta dentro da garrafa.
No caminho combinaram: “Você
pede um suspiro amarelo com confeito e eu procuro a garrafa”.
“Ela está na última
prateleira, bem lá no alto.”
A vendinha estava
silenciosa e escura. Dona Luiza vendia de tudo lá: sabão caseiro, arroz,
feijão, milho, frutas e verduras do seu quintal, biscoito frito, balas,
suspiro, maria-mole, cocada, rapadura, linhas, cordão, agulhas. Mas o que mais
saia mesmo era a cachaça. As crianças entraram com o coração na boca batendo
acelerados, a respiração curta, as pernas bambas e um frio de doer na barriga.
Não havia ninguém lá, nem uma alma viva.
“E agora? O que a gente
faz?” Ambos de cabeça baixa, olhos no piso de chão batido.
“Dona Luiza! Chamou o
menino, a voz trêmula. Ô dona Luiza!”
Uma voz fina, doce e
amigável respondeu lá do fundo do quintal:
“Já vou indo meu filho!”
Era dona Luiza.
E no exato momento em que
o menino apontou para a garrafa lá no alto da última prateleira um estrondo,
barulho de algo caindo contra a parede das prateleiras, fez as garrafas
tremerem e jogou ao chão a garrafa do capeta que se espatifou aos pés das
crianças. Um arrepio de terror e o odor forte da cachaça fizeram os pelos dos
dois se eriçarem até o cocuruto da cabeça, os olhos esbugalharem e elas saíram
em desabalada carreira pelo mesmo caminho que vieram, atravessando a rua como
um “zételitis”, levantando a poeira vermelha e fininha com suas precatas de
pneu velho e lona de caminhão.
Na fuga pegaram o caminho
mais curto, escalaram a cerca de arame se jogando no denso gramado que havia na
frente da casa da menina. Passado o primeiro susto, deitadas na grama as
crianças, corações aos saltos, respirações afobadas e ainda trêmulas começaram
a se estapear um ao outro rindo alto.
“Você viu? Não falei que
era verdade!”
“Creio em Deus Pai.”
Valei-me Virgem Maria!”Persignaram-se três vezes com o sinal da cruz.
“Quase me pegou...”
“Tinha patas, tinha
olhos...”
Na correria, o menino
perdera a moeda e adeus chupe-chupe de abacate. Lá na vendinha, dona Luiza
muito triste catava os cacos da garrafa e lamentava a pinga curtida há dois anos
no caranguejo.
Belo Horizonte, 10 de
Dezembro 2021
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