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segunda-feira, 18 de maio de 2020

BRAZIL. COVID-19: SOBREVIVER À DOR

SESSENTA DIAS DE ISOLAMENTO SOCIAL
Marina da Silva

Faltam respiradores, mas estou respirando
Mesmo com a escalada geométrica das mortes por coronavírus
Estou viva, sobrevivendo.
Materialmente nada me falta, minha imensa família vai bem
Espalhada aqui, ali, acolá
O mesmo com amigos e amigas queridos. Meus colegas estão bem, meus antigos vizinhos, meus bichos...
Mas impera em mim uma inquietude e melancolia
Tristeza, ansiedade, insônia cheia de números, gráficos, mapas, estatísticas.
Não busco informações, mas elas insistem vir até a mim.
Mariana me distrai, me deixa feliz nos momentos que  conversamos nas vídeos-chamadas. Me chama de louca e despejo sobre sua candura e inocência minha dor quando ela me pergunta: como vai tia? Benção.
Por alguns minutos, às vezes até por horas me sinto segura na sua fragilidade menina.
Você é minha tia mais doida. E ela uma menina pura, inocente do tamanho cataclísmico de toda a desgraça que o mundo vem passando nesta pandemia.
Cura. Sim me curo nestes momentos, reforço minha fé e esperança.
Sinto tanta falta das crianças.
Sim. É o que mais me entristece. Não ver minhas crianças. Crianças do meu trabalho e neste isolamento social, as crianças da creche ali embaixo da minha janela me faz uma imensa falta.
Elas são meu despertador das 7H. Vão chegando trazidas pelas mãozinhas ou atrás de um adulto puxando suas mochilinhas, uniformizadas, a lancheira atravessada nos frágeis corpinhos.
A rotina de vê-las, de esperar por elas na hora do recreio, de correr à janela quando gritam, cantam, gargalham com seus professores.
Penso nelas, penso em champanhe: o estouro da rolha, o jato espumante, claro, límpido cheio bolhas borbulhando e um gosto bom  na boca da alma.
O casarão está vazio, mudo, frio, diria morto sem as crianças e professores. 
As apresentações folclóricas das crianças, as brincadeiras de roda, bola, o escorregador e a cesta de basquete. Sinto falta delas "tocando" um enorme pneu todo bambo, duas vezes ou mais, maior que seus corpinhos.
Olho pela janela e não vejo as crianças. Não tropeço mais com crianças a caminho do trabalho. Não estou trabalhando, não estou caminhando, não estou pegando o busão.
Aquela rotina de vê-las da janela do ônibus a caminho das creches e escolas de ensino fundamental e médio pelas ruas e avenidas da cidade que atravesso anos a fio, décadas e décadas. Fui professora, confesso, mas no meio do caminho entre o feijão e o sonho, o ronco da barriga bateu mais forte...
Hoje sou a "tia" que ensina pais e mães e babás a ciência de ter saúde bucal escovando os dentinhos, passando fio dental e escovando a língua para não deixar dar doenças porque tem uns bichinhos do mal, uns bandidos que não vão ao supermercado e comem tudo que as crianças comem e fazem furinhos nos dentes, a cárie. E ainda tem o cheirinho ruim na boca quando não se tira a comida escovando dentes e língua e passando fio dental todos os dias.
Preciso ver crianças e enquanto o perigo não passa olho pela janela a cheche vazia, absurdamente silenciosa e morta e me pergunto: elas voltarão? 
Sim, claro que  voltarão. 
Fico tranquila ao saber que não é falácia,que as famílias cujos filhos estudam na rede municipal desta desadministrada metrópole podem pegar cestas básicas e a pouca ajuda federal de seiscentos reais pode evitar uma crise séria de fome aos pequeninos. 
Enquanto isso, passaram sessenta dias e o pico de mortes por COVID-19 ainda não foi atingido no Brasil.  O luto cresce em meu coração e nos corações daquelas pessoas cuja a vida de qualquer um no planeta importa. 
Se importar, deixar doer, ficar triste, sentir este sentimento inexplicável  que faz doer a cabeça pela irracionalidade  de um mundo altamente tecnológico e científico.
Não tem testes, não tem respiradores, não há medicamentos e nem vacina. Tem ladrões e suas empresas laranjas roubando dinheiro público, rindo e lucrando em meio a tanta desgraça.
Amazonas, Acre, Amapá, Ceará, Maranhão, São Paulo, Rio de Janeiro, enfim, os 27 estados e Brasília, o Distrito Federal. A morte, feliz, manda seus ceifadores para a colheira de vidas: idosos, adultos, crianças, adolescentes, bebês.
Semana passada fiz quatro dias de exercício em casa com Lira Bueno, minha personal desde que larguei a academia em 2015.
Tento me alimentar melhor, compro um cooktop de uma boca e não tenho panelas. 
Ontem tomei coragem, depois de três dias encarando as anotações de tarefa a fazer: passar roupas. Então o ferro quebrou na primeira peça...
Levei uma hora inteira e várias ferramentas consertando o danado e quando terminei, cadê a coragem? Amarrei tudo numa gigantesca trouxa.
Estou lendo cinco livros simultaneamente: Vírginia Woolf (inglês); Rosseau e Maupassant (Francês), Ênio Tavares e João Ubaldo (Português). Terminei Essa gente, de Chico Buarque.
Tia você lê inglês? Mariana abismada. Leio. E francês? Sim, e italiano e espanhol, um pouquinho.
Esta última semana não assisti Jornal Nacional. Assisti séries e filmes.
Voltei a comer côco, me ajuda com a ansiedade e o  trincar de dentes, bruxismo.
Também me acalma muito assistir Dra. Sandra Lee, a rainha dos cravos, cistos, lipomas, etc. Aquilo de tirar um a um os comedons, as mílias, os cistos, os gigantescos lipomas em lugares mais inusitados do corpo. Gosto do inglês da doutora, embora entenda bem pouco, aliás gosto mesmo é das suas risadas, do seu tratamento humanizado e alegria de ajudar as pessoas que atravessam anos, uma vida, escondendo ou não tendo grana para um tratamento dermatológico. Confesso, gostar de espremer cravos e espinhas...
Gosto de suas unhas super coloridas, seus cabelos longos, olhos amendoados, seus lábios finos e o respeito que tem com o sentimento alheio.
Sim, antes de dormir, todos os dias agora, assisto Dra. Lee.
Ainda choro. Não só pela crise coronavírus, mas pelas opções de gerenciar a crise politicamente tentando salvar os preceitos neoliberais, ultra-liberais atuais dos bilionários, donos de grandes corporações planetárias, que só aceitam gastos públicos para salvá-los nas crises financeiras provocadas por eles; aumentando suas imensas fortunas na especulação financeira de Wall Street, e pelas guerras por eles incentivadas, inventadas: onde estão as bombas atômicas do Iraque e Irã? E a guerra na Síria?
Vou continuar chorando, mas agora mais do que nunca por esperança. Este governo morreu antes de começar o segundo ano do primeiro mandato e a culpa não é da Dilma ou da esquerda: a culpa é do COVID-19 que ceifando milhares de vidas pelo mundo, jogou a pá de cal nas intenções de aprofundar o ultra-liberalismo no Ocidente. É impossível a qualquer governo segurar o dinheiro e não salvar o próprio povo.
Escrever para mim é sobrevivência: à dor e sofrimento pelos seres humanos de todo o mundo, pelos brasileiros mais pobres e nos perrengues que se arriscam todos os dias:  morrer de COVID-19 para não morrer de fome.
Os sinos dobram pelas famílias que perderam seus entes queridos. 
Minha filha fez uma serenata para mim no dia das mãe, deixou que eu a abraçasse, mas ficamos mantendo a distância prescrita pela OMS: Organização Mundial de Saúde e no dia seguinte fez jejum dia 14 de maio pelo mundo atendendo um pedido, do papa Francisco, que lhe enviaram pelo Instagram.
Como estou fugindo de tudo não fiquei sabendo, mas sinto estar em sintonia com esta onda de compaixão mundial na pandemia coronavírus.
Voltei a ouvir música, todos os tipos de música e acompanhar a vida de Johnny. Wier, o maior ginasta olímpico de patinação artística e a diva do gelo.
A segunda começou com sol e eu na janela olhando a creche e esperando a volta das crianças. 
Elas voltarão, disto não tenho dúvida. Porque tudo isto vai passar, vai demorar muito, eu sei, mas vai passar. 
Enquanto isso preciso sobreviver, começando por respirar e deixar doer...

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