SENTIMENTO DO MUNDO
Marina da Silva
Foto Marina da Silva. "Eu ando pelo mundo prestando atenção em"... coisas que eu sei o nome.
A vida deveria ter me tornado dura, insensível, um imenso bloco de granito impenetrável, maciço e com propriedades anti-absorvente, anti-aderente, anti-pessoas, anti-mundo. E bem que ela tentou! Mas nasci estranha, bicho esquisito e com um estranho sentimento do mundo. Um sentir de coisas e de gentes e de bichos, cantos e água e sussurros e poesia.
E esse sentimento de tudo é que é o motor da minha vida, o que me faz ver sempre mais adiante, numa busca e tentativa incessante de descompreender o incompreensível, o inominável.
As terríveis ausências materiais, as mais simples para garantir a sobrevivência, enriqueciam-me o espírito. Um espírito vagante, muitas vezes do corpo descolado, sonhador, querelante, inquisidor.
Cresci assim, a vida tentando me embrutecer, galvanizar-me contra todos e tudo e eu rejeitando, lutando, despindo-me sempre dessa película anti-tudo, abjeta, degradante.
Às vezes queria não ter olhos, ouvidos, olfato, tato, fala. Assim não teria que engolir seco ou emudecer meus lamentos. Não ouviria choros, não sentiria odores, não me importaria em ter pernas se são inúteis para o lugar que quero fugir. E principalmente não veria olhos, olhares, lágrimas, misérias, violências grandes, pequenas ou ínfimas.
São os olhos que mais me atraem e mais me incomodam e mais me tocam. Como o olhar daqueles garotos em suas vestes rotas, catadores de lixo, que via encolhidos, joelhos abraçados, escondendo-se do frio, aceitando esfomeados, migalhas dos transeuntes ou de quem saía da padaria, enquanto minha filha deliciava-se com um imenso e delicioso pedaço de torta de morango coberta de chantili na confeitaria do outro lado da rua.
Olhos de lince, olhos de gato, de esperteza e vigia. Olhos que denunciam esse mundo de descaso, de valores invertidos, onde às pessoas sobrepõem-se sempre o dinheiro, o poder, a ilusão do individualismo.
Esses olhares me chicoteiam a alma faz-na sangrar, contaminam-me, acidifica-me os pensamentos, as palavras, o riso; mas que às vezes curam-me, como o olhar sorridente, agradecido, do rapaz que se estirou aos meus pés no piso do busão e que por instantes fica iluminado quando lhe dirigem a palavra e lhe perguntam se há algo que se possa fazer por ele, se está doente ou se é só um chiste.
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