ASSIM
CAMINHA A HUMANIDADE
Marina da Silva
Lembro-me como se fosse hoje, o nó na
garganta, uma coisa esquisita revirando meu estômago, um sentimento
inexplicável, dilacerante que me veio ao ler uma poesia, se não me falha a
memória, de Bandeira, um canto de indignação, consternação e perplexidade ao
ver um bicho estranho revirar o lixo, fuçar e comer coisas do lixo e constatar
que aquilo, o bicho, na verdade era um homem.
Nunca mais fui capaz de ler tal poesia e
nunca mais a esqueci. Era pesada, sombria demais para uma menina quase
adolescente que vivia na lua. Minha alma ficou marcada para sempre e um medo
terrível de ser transformada assim, de homem em bicho me acompanha pela vida.
Mas não o medo das ausências materiais,
medo de viver no e do lixo como
atualmente vivem milhões de homens, mulheres, idosos, crianças, grávidas
espalhados pelos quatros cantos do
mundo. Sem dignidade, marginalizados, vivendo espúria e precariamente, salvando
o planeta catando, comendo, reciclando lixo e perdendo a cada segundo sua
humanidade; as potencialidades humanas travadas, impedidas, roubadas na exploração
predatória da ditadura capitalista.
Milhões e milhões de seres humanos
relegados à extrema miséria num mundo onde o poder, o potencial humano rebrilha
de forma inimaginável.
Nunca o homem foi tão grande, nunca a
capacidade humana foi tão exponencial, nunca as forças essenciais humanas foram
tão refulgentes como na atualidade, mas também nunca a miserabilidade, a
desumanização do ser do homem atingiu proporções tão gigantescas, grotescas,
bizarras e escatológicas.
O mesmo ser que produz riquezas
materiais impensáveis trinta anos atrás produz arrasando o humano, a humanidade
dos homens, transformando-os em seres inqualificáveis, inferiores até mesmo aos
bichos.
Homens que para garantir a mera
sobrevivência e acima de tudo a dignidade e a honra de permanecer na espécie
humana se sujeita a condições de um trabalho desumanas, escravo de relações
abjetas que garantam a reprodução cada vez maior, intensa, global de um mundo
de valores invertidos.
Um mundo produtor de mercadorias cada
vez mais sem sentido de uso, de utilidade e corrosiva e degeneradora dos
valores humanos e da busca por uma humanidade outra em que a lógica da produção
não destrua sua principal razão de existência: o homem.
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