O ROUBO
DO VIOLÃO
Marina da Silva
“Mãaaae!” Voz de choro ao
celular.
O coração ficou apertado, aflito.
“Oi meu bem!” Fingindo
calma.
“Roubaram meu violão.”
“Como? Quando? Como foi
isso?” Coração doendo, mas tranquila.
“Sabe mãe, meu primeiro violão?”
Então ela contou como aconteceu o assalto. Ela estava com o violão no
carro e foi encontrar o namorado e amigos.
“Eles arrombaram o
porta-malas e levaram meu violão.” A voz embargada, chorosa. “Não é pelo violão
mãe, é pelo valor sentimental, por toda a minha estória que estava no meu
primeiro violão...”
O primeiro violão. E a memória do fato voltou naquele momento. Ela estava na sala, ferro, tábua de passar e uma enorme montanha de roupas jogadas no sofá de couro amarelo-mostarda ouvindo um CD de Zé Ramalho enquanto a menina brincava no quarto criando estórias com seus brinquedos preferidos. Então começou a tocar uma música instrumental de Zé Ramalho: Bicho de sete cabeças.*
A menina de quase sete
aninhos veio à sala e declarou:
“Mãe eu toco melhor que
ele!”
A mãe sorriu e concordou.
A menina vivia com o violão do pai para cima e para baixo desde que aprendeu a fugir do quarto e se enfurnar na cama do casal escalando o gaveteiro do berço.
“Claro que sim! Você é
minha menina das artes.”
“É verdade mãe! Eu sei tocar melhor que ele!” E ela voltou para seu quarto, nas mãos um boneco Max Steel. Para o aniversário de sete aninhos ela pediu a mãe super animada:
“Mãe me coloca na aula de
violão?”
“Sim.”
E no sábado foram a uma
loja especializada em instrumentos musicais comprar o violão e como a mãe
malhava no Sesc ali pertinho e lá tinha aulas de violão clássico e MPB foram
conhecer o professor Aderson; ela carregando um violão maior que ela mesma, olhinhos brilhando. Um pedacinho de gente vestida com sua roupa preferida: camiseta, calça surfista e tênis.
“Mãe, disse o professor
sorridente, o violão é muito grande para ela. Vamos esperar que ela cresça mais um pouquinho, talvez daqui a dois anos...”
A mãe insistiu:
“Olha professor, ela me
disse que toca melhor que Zé Ramalho e Zé Geraldo, juntos. Você fica com ela,
se não der certo e ela desistir ou não tiver nenhum dom ela sai e o violão vai
para o pai que toca de ouvido.”
O professor topou ficar
com a menina neste mesmo dia; ele tinha um violão menor e ela poderia usar. Ele
esperava que ela desistisse na primeira aula ou primeira semana.
“Dói muito Amanda, vai
machucar as mãozinhas, vai dar calos nos dedinhos viu...”
Mas a danadinha ficou.
Chegava em casa super feliz, dedinhos estropiadinhos e cheio de calos e
treinava religiosamente o “para casa” da aula de violão. Não desgrudava mais do
violão, da pasta de cifras, e um dia apareceu com o violão todo enfeitado.
Fizera uma colagem com quadrinhos, desenhos de violões, guitarras sempre fazendo
suas artes.
“Minha menina das artes”- dizia
a mãe sempre que ela aparecia com uma arte nova:
“Mãe compra aquarela para
mim; mãe compra tintas; mãe compra lápis HD... Mãe me coloca na aula de desenho
do Sesc.”
E os anos iam se passando
e ela pintando, colorindo, desenhando histórias em quadrinhos, tocando violão e cantando Chico Buarque em um dos show de apresentação da escola. E assim, tocando, cantando, desenhando, pintando e fazendo artes crescia, crescia, crescia sempre agarrada ao violão. Outros violões
vieram...
“Mãe vi um cara tocando na
rua e comprei um violão igual ao dele. Uma música linda mãe, no meio da praça e
parei para ouvir." Ela estava em Toledo numa excursão da escola à Espanha.
“Mãaeeee vem cá me ver
tocando piano!”
A mãe ficou abismada,
diminuiu o fogo da panela e foi ver o que era, pois não existia piano na casa.
Encontrou a menina no computador tocando Beethoven no teclado.
Ela sorriu, olhou para a
mãe e:
“Mãe me põe na aula de
piano, tem uma professora no SESC...” No final do curso foi apresentada como
compositora e pianista.
“Mãe eu sei tocar
guitarra.” Aprendeu sozinha e lá foram os três, pai, mãe e menina comprar uma
guitarra. E o vendedor da loja permitiu que ela usasse a cabine onde se testava
instrumentos e ficou encantado com a menina tocando Engenheiros do Hawaii.
"Mãe entrei para aula de violino."
“Mããããaaeee.” Chorando.
Como doeu vê-la e ouvir
sua dor pelo roubo do violão. As lágrimas rolavam dos dois lados remotamente.
“Eu escrevi sobre o roubo
mãe. Roubaram minha vida.”
"Você fez bem em escrever filha."
Era um luto, uma passagem necessária da vida. Escrever sobre ela aliviaria o coração. Não era mesmo pelo violão, era pela linda estória que ele carregava sobre a menina que adora tocar, batucar, soprar e cantar músicas. Esta vivência nenhum ladrão pode roubar.
* Zé Ramalho. Bicho de Sete cabeças (1978). https://youtu.be/NMPVq5-GIbw
Nenhum comentário:
Postar um comentário