O BATISMO DO LEITE*
Marina da Silva
Não se assuste! Não é assunto de
religião e batismo aqui não é o rito religioso de aceitação da fé cristã. O
batismo do qual falo é o mesmo que falsificação, adulteração de mercadorias.
O leite sempre foi batizado e muitos
acreditavam religiosamente, que somente com água. Batizar um produto é, além de
abusar da fé do consumidor, uma fraude para conseguir lucros cada vez maiores.
Assim como o batismo cristão é um
ritual histórico instituído por João Batista, o profeta que batizou Jesus nas
águas do rio Jordão, o batismo como falsificação, adulteração de produtos pode
ser rastreado em tempos remotos, especialmente ligados ao surgimento, ascensão
e estabelecimento definitivo do modo de produção capitalista.
O batismo não ocorre somente em
tempo de vacas magras, mas principalmente com o aumento da competição e não se
prende somente ao leite, mas ao “pão, vinho e a hóstia sagrada”.
Chevalier, químico francês,
citado por Marx em O Capital (1998:289), relata processos de adulteração de
mercadorias: “Para o açúcar, há l6 métodos de falsificação; para o azeite de
oliva, 9; para a manteiga, 10; para o sal, 12; para o leite, 19; para o pão,
20; para aguardente, 23; para a farinha, 24; para o chocolate, 28; para o
vinho, 30; para o café, 32 etc. Nem mesmo o bom Deus escapa dos
falsificadores”.
O recente batismo do leite
descoberto pela polícia federal na Operação Ouro Branco (outubro/2007), em
cooperativas do estado de Minas Gerais, maior produtor de leite do Brasil; e
que deixou graves suspeitas sobre toda a linha de produção láctea no país, é
apenas mais um processo de falsificação entre milhares de outros que sofrem os
laticínios. Soda cáustica, água oxigenada são apenas substâncias da fórmula de
fazer dinheiro fácil ainda no balde batismal, desrespeitando e abusando da boa
fé e principalmente da impotência do consumidor.
Tudo o que é verdadeiro pode e é
falsificado: alimentos, bebidas, produtos de limpeza, de beleza, remédios,
drogas, roupas, calçados, jóias, CD’s, DVD’s, livros, brinquedos, os selos de
inspeção e fiscalização dos órgãos do governo, carteira de motorista, diplomas
do prezinho ao doutorado, informação.
Adulteração, falsificação,
contrabando, pirataria, saem das fábricas e povoam os lares e as relações
humanas numa prostituição inimaginável no século XXI. Pode-se resistir a uma ou
outra falseta, mas não a avalanche que tomou conta do mundo atual, onde a
produção de mercadorias cada vez mais se vale de ações ilegais, corruptas,
fraudulentas, formas precárias e desumanas de trabalho e muito do trabalho
escravo de adultos, jovens, crianças de ambos os sexos.
Rascunho este texto com caneta e
caderno made in China, uso roupas suspeitas de trabalho escravo em confecções
de São Paulo e enquanto digito o computador me alerta que meu software pode ser
pirata. Mais grave, no entanto, foi ver na TV o deputado federal mais votado na
última eleição, Paulo Maluf, do alto plenário, defender com extremo fervor e santidade o
contrabando e a pirataria, visando tornar constitucional a ilegalidade, a
imoralidade.
A ênfase dada ao vale tudo na contemporaneidade,
a fúria na busca das melhores vantagens comparativas (matérias-primas, mão-de-obra
barata, isenção fiscal e outras benesses), a destruição impiedosa da
concorrência na luta pelos mercados, mudam não somente o significado e a forma
de produção de mercadorias como afetam as relações sociais de trabalho, a vida
do trabalhador (caráter, personalidade) e da sociedade em geral invertendo os valores
éticos, morais, humanos, etc e tal.
*Publicado no Jornal Estado de Minas. 2007. Caderno Opinião.
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