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domingo, 27 de fevereiro de 2022

BRAZIL. ESTÓRIA PARA CRIANÇA DORMIR

 A DESGRAÇA

Marina da Silva


"Ai ai ai! Desgraça pelada!"

Eles estavam naquelas aventuras de criança caçando tesouros pelos matos que margeavam o córrego Santo Antônio quando a menina sentiu uma dor aguda no pé direito. Pisara num caco de vidro e machucara o pé no local onde o solado do chinelo de pneu estava muito gasto.

"Desgraça pelada!" Repetiu novamente ao se sentar na grama para ver a gravidade do ferimento. Era um caquinho de vidro, muito pequenino, mas pontiagudo e retirá-lo não ia dar muito trabalho.

"Não chama a mulher-da-trouxa que ela aparece e te bota na trouxa e leva para o inferno". Avisou-lhe o garoto que se postou de cócoras para assistir a operação de retirada do caco de vidro do pé da menina.

"Quem chamou essa aí?"

"Você!"

"Chamei não! Você está doido?"

"Chamou sim!". Disse o garoto e repetiu baixinho e receoso: 

"Desgraça pelada é o nome da mulher-da-trouxa, a mãe do capeta, do coisa-ruim e se você chamar o nome dela, ela vem te pegar e te levar para morar no inferno com ela e satanás."

"Quem te falou isso? Perguntou a menina, os olhos arregalados, esquecendo o acidente com o pé.

"Mamãe me falou; a gente não pode xingar este nome. Se xingar ela bate na nossa boca, coloca a gente de castigo porque é um nome feio. É o nome da mulher-da-trouxa."

A menina ficou  séria  por um momento e  muito assustada decidiu por fim na aventura e voltou para casa mancando e muito apressada. No quintal dos fundos  que não tinha nenhuma cerca, a mãe pegava roupas secas no varal, dobrava-as e as colocava na bacia de lavar roupas para em seguida levá-las para dentro da casa. Do seu posto via as crianças brincando ao longe e percebendo a filha voltando rápida e mancando se pôs em alerta. A mãe largou tudo e foi ao encontro da criança tomando-a ao colo e perguntando o que tinha ocorrido.

"Ela pisou num caco de vidro e não conseguiu tirá-lo." Informou o menino também preocupado.

A mãe depositou a filha sobre a pedra de lavar roupas que tinha como suporte quatro pneus velhos e ficava perto do tambor de água. Colheu água com uma lata de óleo, lavou o pezinho com sabão caseiro e investigou o local a procura do caco de vidro com o dedo indicador. Era um caquinho de nada que saiu numa leve coçadinha de unha.

"Prontinho, tirei o caquinho de vidro e não saiu uma gotinha de sangue sequer". Falou acalmando a criança. A mãe esperava que a menina pulasse da pedra e fosse se meter em suas brincadeiras imediatamente, mas isto não aconteceu. A danadinha estava ressabiada, com "cara de veado que viu caxinguelê", ou seja, tinha aprontado alguma das suas artes.

"Podem ir brincar gente, mas não saiam das minhas vistas!" Repetiu. Nenhum dos dois se mostrou disposto a sair do lugar. Então a mãe suspeitou algo mais sério:

"O que foi gente? Vocês querem me contar mais alguma coisa?" O garoto foi logo dando o serviço:

"A Nina chamou a mulher-da-trouxa duas vezes quando machucou o pé. Ela disse aquele nome feio." E ele sussurrou baixíssimo para não ser ouvido pela mulher-da-trouxa:

"Desgraça pelada."

A mãe se conteve para não rir, fez uma cara séria e contou a estória da palavra. Aquela palavra não agradava ao menino  Jesus nem a Deus, o Papai-do-céu porque era dita com raiva, ódio. Quando a pessoa está nervosa, contrariada ela xinga este nome e corre muito perigo, coisas ruins lhe acontece, e ela fica longe das graças e proteção de Deus. As crianças corriam perigo também porque eram as preferidas pelo capiroto, o coisa-ruim, o capeta que mandava a mulher-da-trouxa pegar as crianças que  brigavam, desobedeciam aos pais e professores e xingavam este nome feio. E então ela vinha e pegava as pessoas para levá-las para serem escravas no inferno. Se alguém chama mesmo de brincadeira, a desgraça vem  com uma enorme trouxa na cabeça e ela abre a trouxa e joga as crianças lá dentro e desaparece com elas e nunca mais ninguém dá notícias das crianças, elas jamais voltam para a família.

"Quem é ela mamãe, a mulher-da-trouxa?"

"Ela é uma criatura do mal muito horrenda, tem chifres, rabo  e trabalha para o capeta. Ela mora no inferno e vem buscar crianças desobedientes, malcriadas, que falam palavrões e são briguentas e vivem chamando o nome dela."

"Eu não quero ir para o inferno mamãe! Saiu sem querer por causa do caquinho de vidro." Nina estava apavorada.

"E você não vai não meu bem! Vamos fazer uma oração para os anjinhos da guarda que são os soldadinhos de Jesus e protegem todas as crianças." As crianças suspiraram aliviadas, fizeram a oração e no minuto seguinte desapareciam quintal afora. A mãe sorriu tranquilizada. Dez filhos na casa e a estória da desgraça pelada volta e meia reaparecia. Ora como disgramada, disgrama ora como disgreta, desgraça, mulher-da-trouxa e até desgraça pelada. A lenda diz que a desgraça torna a pessoa desgraçada ou desgraçado, sem as graças e proteção de Deus, o único que pode dar graças a tudo e qualquer  coisa como um bebê com saúde, comida, emprego, livrar de doenças, etc. Diz-se que a mulher-da-trouxa é a mãe do capeta, trabalha para satanás e carrega para o inferno aqueles que a chamam, invocam em xingamentos quando estão raivosos, irados, violentos, contrariados, com ódio. A disgramada ou desgraça prefere as crianças. Ela aparece do meio do nada, abre a trouxa e vai catando as crianças e jogando-as no fundo da trouxa e as leva para o capeta  nos quintos dos infernos. Os adultos sofrem as consequências e só atraem coisas ruins a si mesmo. A desgraça é uma crença religiosa, uma lenda, folclore  passada de geração. Há pouco tempo atrás -  a mãe se lembrou - ela, a mulher-da-trouxa apareceu para um dos seus rapazinhos muito desobediente, puxa-briga e boca suja e que, longe das vistas e ouvidos dela, vivia com o nome maldito na boca.

Certa noite o garoto, muito cansado, desobedeceu a ordem da mãe e se recusou a fazer xixi antes de dormir. Lá pelas tantas da noite ele  acordou sonolento e sentindo que ia mijar na cama e claro, levar uma surra; então levantou zonzo, abriu a porta da cozinha e foi urinar no quintal. Era uma linda noite enluarada e estrelada de outono no cerrado e de repente, perto da cisterna e ao lado do jirau de quarar roupas da mãe ele viu a mulher-da-trouxa e uma trouxa enorme.  O garoto saiu em desabalada carreira, os pelos, do dedão do pé até o cocuruto da cabeça,  ficaram em pé, arrepiados de terror e medo gritando loucamente: a mulher veio me buscar! A mulher-da-trouxa veio me pegar! A mulher vai me pegar! A mãe assustada veio ao socorro e o menino a agarrou pela cintura sem fôlego, tremendo e aos gritos.

"A mulher vai me pegar!"

A mãe aproveitou a deixa para lembrá-lo das desobediências, palavrões e brigas e que a culpa era dele mesmo que vivia chamando a mulher-da-trouxa. Agora só tinha um jeito de se livrar de ir para o inferno: rezar muito! Ajoelhados fizeram uma oração para o anjo da guarda, três Pai-nosso, dez Ave-marias, fizeram o sinal da cruz três vezes para fechar o corpo ao perigo e ao saber que a danada já tinha dado no pé com as orações o rapazinho logo adormeceu tranquilo. Lá no terreiro perto do jirau, comadre Arlete, a vizinha que, como a mãe, lavava roupas para fora, terminara de recolher e dobrar e fazer uma enorme trouxa de roupas limpas e estava pronta para coloca-la sobre a cabeça assim que conseguisse parar de rir. Volta e meia as lavadeiras do bairro e da cidade eram confundidas com a mulher-da-trouxa, a disgramada, a desgraça, mãe do demônio. A mãe veio lhe ajudar sorrindo e lá se foi dona Arlete lavadeira, equilibrando uma enorme trouxa na cabeça, uma mão na cintura e uma mão apoiando sua trouxa e  requebrando toda, feliz com as roupas limpas, secas, prontas para passar e rindo do susto que passou o rapazinho.


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