CAPITU
Marina da Silva
Estava na copa
tomando café quando ela chegou. Já sabia que viria cobrir férias e esperava uma
moça, uma mulher, enfim, um adulto.
_ Cheguei!
Jogou-se pesada na cadeira, a mochila largada sobre o colo, numa atitude
despojada, mas pretensiosa.
Doze anos.
Calculei. Sua atitude chamou minha atenção, parecia um caititu fugido do mato.
Trazia a cabeça coberta de borboletinhas multicoloridas presas num penteado
afro. Trajava um agasalho adolescente, com capuz, na cor rosa tais quais os
brincos de argolas e as sandálias. Parecia uma boneca latina, cabelos tonalizados
de vermelho, pele morena, lindas sobrancelhas arqueadas.
_ Meu nome é
Bárbara! Respondeu-me; a voz forte, o cenho fechado, o que lhe conferia um ar
de maioridade.
_ Eu moro numa
favela! E contou-me as muitas atribulações de sua longa existência: o colégio,
a turma do bairro, um namorado complicado, presidiário, tão velho quanto ela e
morto num destes acertos da favela.
_ Você é muito
bonita! Disse-lhe. Parece uma boneca.
_ Barbie?
Sorriso debochado entortando-lhe os lábios.
_ É, Barbie.
A menina desarmou-se
e me olhou um tanto intrigada, num gesto e trejeito de cabeça que me trouxe à
memória, Capitu, a dona do olhar oblíquo e dissimulado, personagem do clássico
livro de Machado de Assis, Dom Casmurro.
O resto do dia e
durante a semana inteira, para aonde me virasse, lá estava ela: Barbie. Vinte
anos completos, informara-me. Fora muito bem no treinamento para dar conta de
tudo e mexer nos novos equipamentos de esterilização, que para testá-la, já na
sua primeira semana de trabalho, careciam de manutenção e pelo técnico foram
levados.
Uma prova
difícil, um teste de coragem como todos os que a vida lhe aplicava. Muito sagaz
e inteligente, passou em todos, Capitu.
_ O que tem de
violência boa aí no jornal?
_ Meu primo não
pagou a dívida e está seqüestrado pelos carinhas lá do bairro!
_ O líder da
favela está preso e as pessoas que ele expulsou voltaram para retomar o
comando.
_ Meu colega de
escola foi assassinado no final de semana! Meu amigo de infância, tá aí nessa
página...
Não lhe neguei
os ouvidos, não emudeci suas queixas, não lhe cortei as falas. Deixei que se
aproximasse que tentasse assustar-me, aterrorizar-me, expulsando e transferindo
a mim, seus medos, o pavor e terror ali obliquamente em seus belos olhos
estampados. Pedia socorro, queria um abrigo seguro.
_ Houve muitos
tiros essa noite e eu corri para o quarto dos meus pais! A gente tem que mudar
de lá! Minha mãe falou que meu quarto é mais seguro, não tem janelas. Não quis
nem saber, preferi ficar perto do meu pai e dela.
_ O exílio _
pensei_ Capitu precisa ser exilada para manter-se salva, segura. Não um exílio
para expiar culpas, mas para garantir-lhe a vida, mantê-la viva e a salvo, para
terminar os estudos, namorar, ter um emprego, ter oportunidades, usar suas
roupas cor-de-rosa tal qual Barbie.
_ Vocês vão
sentir minha falta! Ah vão!
_ Claro que não!
Você é travessa, muito levada!
_ Só faltam duas
semanas! Sorria às vezes uma dança ensaiava.
_ Só mais esta
semana e vou ficar desempregada... Olhos retificados pelo desamparo.
_Daqui a três
dias... O pessoal quer fazer uma festa de despedida! Não havia como não
adotá-la. Uma bonequinha, frágil, pequenina, muito esperta e sagaz.
_Fica com meu
telefone! Voz firme, dura como a vida de risco que levava. _ E liga pra mim!
Ordenou-me.
_ Eu ligo.
ATLAS DA VIOLÊNCIA 2017.
http://www.comciencia.br/a-violencia-no-brasil-tem-cara-cor-e-endereco/
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