O HOMEM DA CARROCINHA
Marina da Silva
Vamos brincar de carrocinha?
E as crianças do lugar apareciam de todos os lados para brincar. Os maiores formavam uma meia roda com a parede da casa e criava a carrocinha; duplas viraram o homem da carrocinha, aqueles que capturavam os cachorros, mesmo se tivessem donos, perdidos pelas ruas e levavam na carrocinha para o canil da prefeitura onde viravam sabão; as demais crianças eram os cachorros e cadelas de rua que seriam caçados, capturados e presos na carrocinha e despejados no canil.
E a brincadeira começava: alguém contava até dez e a cachorrada saia em desabalada carreira fugindo dos homens da carrocinha. Assim que uma criança era capturada e presa nos braços de outras duas crianças ela era conduzida para a carrocinha, mas com muitas tentativas de fuga e cantoria dos cachorros livres.
"A carrocinha pegô um cachorro de uma vez, a carrocinha pegô dois cachorro de uma vez. Ô tralalá chibom que é , ô tralalá chibom chibom".
E o cão ficava preso na roda de crianças que na brincadeira era a "carrocinha" e dali não fugia mais. E novamente a um comando a "cachorrada se debandava pela rua, as duplas saiam atrás à captura e a canção seguia até que o último bicho fosse pego e preso e levado para a carrocinha da prefeitura.
"A carrocinha pegô três cachorro de uma vez, a carrocinha pegô quatro cachorro de uma vez. Ô tralalá chibom que é, ô tralalá chibom chibom".
Foi um acidente com uma carrocinha de um catador de materiais recicláveis que lhe trouxe à memória a brincadeira de criança, a carrocinha. Ela brincara muito de carrocinha, adorava ser o cachorro que saia em disparada correria fugindo do homem da carrocinha, seus primos. Era sempre uma das últimas crianças capturadas e levada para a carrocinha. Gostava de correr em desabalada e louca correria, adorava driblar o homem da carrocinha e tentar fugir dos braços do homem da carrocinha e gostava da cantoria. Ainda se brinca?
Papelões, jornais, revistas, livros, latinhas, garrafas pets foram lançados no asfalto quando, na tentativa de puxar sua carrocinha, na realidade um carroção lotado de materiais recicláveis, no olho, umas 500 toneladas de peso, o homem da carrocinha topou com uma pedra no meio do caminho: uma ravina entre a camada do asfalto e a calçada.
De longe ela viu o desastre, viu homens próximos apenas olhando, o mesmo olhar neutro e sem vida das gentes endurecidas, enregeladas, anestesiadas à espera do busão.
Sinal de trânsito fechado. Nenhum motorista se dispôs a ajudar. O velho da carrocinha, como muitos outros catadores, homens e mulheres da cata de recicláveis não praguejou, não mudou o semblante, apenas saiu juntando o mais rápido que podia as latinhas que caíram perto dos carros e pela agilidade demonstrada o perrengue era apenas um dos muitos percalços de sua jornada diária.
Ela apressou o passo, juntou papelões e latinhas deixando perto da carrocinha. Ofereceu "uma mãozinha" para empurrar por trás a carrocinha o que foi rejeitado...envergonhado.
"Deus lhe pague moça. Eu dou conta. Obrigado, vá com Deus."
Ela se despediu, desejou bom dia, abençoou o dia dele também e saiu apressada; na mente sussurrando Chico Buarque: "é gente humilde que vontade de chorar."
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