QUANDO O LIXO É VIDA
Foto Marina da Silva. Brasil, Belo Horizonte, MG.
Marina da Silva
Vinte e duas horas e um
pouquinho, quinta-feira de lua cheia, quente, abafada e de lua escandalosamente cheia.
Na sala de aula quase
vazia ainda há vestígios de discussão sobre relações de poder, dominação,
exploração, teocracia, vontade política, representação democrática, vontade
divina, vontade de ir embora...
Bocejos incontidos
escondidos atrás das mãos ou cadernos. Olhos vermelhos cansados, lacrimejantes.
Corpos doídos, entortadas colunas, pernas pesadas mal sustentadas em calçados
de chumbo.
A lua cheia num manto
escuro, num pedacinho retangular do Conservatório neoclássico da faculdade de
Música, salpicado de cacos de vidros na quinta-feira de discussão de poder e
política, a lua imponente e superior olha a Terra.
Vinte e duas e vinte a
exaustão põe fim à discussão e rostos inchados de sono e cansaço sequer
conseguem esboçar sorrisos de despedida. Uma mulher chega à porta de saída
desanimada para a interminável espera; no mínimo meia hora em pé frente à rua a
carona do marido que só sai, pontualmente, as vinte e duas horas e quarenta minutos
da escola de Direito.
Para passar o tempo
conversa com os vigias que demonstram prazer nesta atenção. Mas na quinta-feira
de lua cheia abafada, sufocante a recepção está vazia. E o motivo logo chamou
sua atenção. Um corpo magrelo, quase esquelético, pardacento de um homem
estendido no chão.
Ao seu lado uma imensa
carga de lixo reciclável, mal se sustenta num carroção improvisado. Ao redor do
corpo taxistas, os vigias, alguns transeuntes curiosos dão rápidas olhadelas e
se dirigem para o ponto de ônibus na virada da esquina e há também um jovem
policial militar.
A mulher se encaminha para
lá, olha o rapaz magrelo arfando muito, olhos esfumaçados, distantes, a mão
colada à roda do seu carrinho.
“O que ouve?” Pergunta.
“O rapaz catador pediu
ajuda, passou mal. Uma dor no coração...”
Ela desvia o olhar para
sua carroça gigante e calcula que aquela carga tem muito mais de 100 vezes o
seu peso em quilos.
“Deve ser fome - alguém
diagnostica - e o peso do carrinho..”
“Carrinho?”
Ela pergunta por que
ninguém o leva ao pronto-socorro João XXIII a poucos metros dali.
“O guarda já chamou o
SAMU, mas não há ambulância disponível.”
“Mas os taxistas? Ninguém
pode levá-lo?”
O magricela solta uns
gemidos no chão, a mão soldada no carroção. Quer falar alguma coisa. O
guardinha, jovem rapagão, colete à prova de balas, coturnos, cinturão,
cassetete, revólver e o rádio na mão lhe pergunta o que é?
Grunhidos saem da boca
ressequida, os lábios muito finos tremem uma frase inaudível. Um vigia se
abaixa para ouvi-lo e avisa ao policial sobre documentos na mochila.
“Mas por que não o levam
de taxi?” Retoma a questão a mulher.
“Ninguém quer se
comprometer! Avisam-na. Quem leva fica responsável e é encrenca na certa!”
“Mas o garoto pode morrer
se não for socorrido a tempo!” Aflige-se.
“O policial já chamou a
“rapa”– sussurra-lhe o vigia- Mas eu escutei os caras da radiopatrulha avisando
que vão demorar e até mandaram o “gambé” aí pegar qualquer carro que passar na
rua. Só que ele já avisou que vai esperar a RP.
“Jesus! Isto não pode
estar acontecendo... tantos carros passando, tantos táxis parados enfileirados
aqui.”
“O problema dona é aquilo
que te falei...”
“Mas e se fosse você,
alguém da sua família?”
O vigia ficou cabisbaixo
sem resposta e não arredou pé do moço demonstrando sincera preocupação.
“Jeremias Silva” Leu em
voz alta o policial.” A radiopatrulha está chegando.”
Passam-se longos minutos
angustiantes de espera.
“Se meu marido sair mais
cedo da aula...” Pensou aproximando do rapaz magricela ali estirado no passeio
da faculdade, esparramado no chão, pernas abertas, canelas finas, pés enfiados
num velho e enorme par de tênis, atarraxado à roda do carrinho e esboçando um
sorriso confiante que parecia dizer:
“Agora vão saber que sou
gente, que tenho identidade e carteira de trabalho, tenho um nome; sou
trabalhador não sou vagabundo não.”
Suas feições mudaram ali
no chão. Estava pensando...
” Foi um negócio estragado que comi e logo hoje que lotei o carrinho de material
bom. Vou ficar quieto, esperar, respirar um pouquinho. Esta subida dos
Guajajaras me derrubou. Puxei forte pra desviar desses taxistas
filhos da puta e do busão. Bando de fédaputa do caralho botando pressão.
Taxistas e motô de busão, fedaputas do caralho!” Ficara furioso com a
ignorância e impaciência deles.
“Vamos Jereba! Recupera
logo senão os “homens” te internam e quem vai cuidar do carrinho?”
O barulho da sirene saindo
da Afonso Pena e entrando na Guajajaras era disfarce para mostrar serviço e pôs
fim ao desassossego no coração da mulher.
“Ainda bem que chegaram. Confessa
o vigia. A senhora tem razão, podia ser qualquer um de nós...”
Com o estardalhaço da
freada os dois policiais desceram rápido da RP cumprimentando o colega e sem
nem olhar para o catador suspenderam seu corpo do chão com extrema facilidade,
como se estivessem suspendendo palha ou um trapo de pano velho no chão.
Jeremias infeliz tentava
dizer algo sobre seu carrinho. Mas ação brutal dos policiais é rápida; jogam o
corpo do rapaz na RP e imediatamente abandonam o local em direção ao HPS
cantando pneus acionando a sirene.
As pessoas se dispersam;
trabalhadores e estudantes vão em direção ao ponto de ônibus, mas não antes de
expressar preocupação com a valiosa carga de papelão, latinhas de alumínio,
vidros e garrafas Pet do catador Jeremias.
“Este material ele não vê
mais. Vaticinou um taxista. Malandro leva tudo em dois segundos!”
“Não no meu turno, não
enquanto eu estiver aqui. Prontificou-se o vigia. Ninguém toca no carroção.”
“Preocupa não gente, daqui
a pouco dão falta dele. Neste serviço eles não estão sozinhos, sempre tem
mulher, irmãos, pai, mãe e amigos. Informou um taxista abusado. E completou:
“Esse negócio de catar
lixo dá dinheiro, senão porque ia ter tanta gente infestando o centro da
cidade, atrapalhando o transito e enchendo nosso saco!”
A mulher fez uma cara de
desprezo, suspirou alto e seguiu o vigia até a porta de entrada da faculdade.
“Quanta ignorância meu
Deus.” Disse desolada. Quem em seu juízo perfeito diria que aquela vida dava
lucro? ”Claro que tem gente lucrando
alto com o lixo, mas não são os catadores. Ela podia apontar quem estava se
dando bem com o serviço dos catadores começando pela empresa terceirizada que
faz o serviço de limpeza da cidade e a prefeitura.
“Liga não dona, numa coisa
esta besta tem razão, ele deve ter família, na descida vão dar com a falta dele
e passarão neste pedaço, aí entrego o carrinho e dou informação pra eles.”
A carona chegou e a mulher
despediu-se dos vigias, mas antes de entrar no carro deu uma última olhada na
descomunal carga no carrinho que na lateral, além da bandeira do Brasil, trazia
uma frase desabafo:
“A vida me fez um papelão
e de papelão eu faço a minha vida!”
Foto Marina da Silva. Brasil. BH