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domingo, 14 de fevereiro de 2021

BRAZIL. "Deixa eu dizer o que penso desta vida, preciso demais desabafar"

 

BOLA DE CRISTAL

Marina da Silva

 

 

A noite ainda ia alta quando o relógio despertou aos pés da cama de Santuza, roubando-lhe as poucas horas de prazer de um sono pesado. Deitara tarde na noite anterior. Tinha comida por fazer, muita roupa pra passar  e por fim foi apenas sacudindo, dobrando e enchendo a cômoda que de tão velha e cheia, estufara nos lados, mal encaixando as quatro gavetas. Embora jovem, ainda não completara trinta e cinco anos, Santuza sentia-se e via-se como uma velha. Pulou da cama que dividia com uma das duas filhas, entrou no banheiro pra esvaziar a bexiga e saiu de lá pronta, num jeans e camiseta surrados, cabelos puxados para trás e preso num desgrenhado rabo de cavalo.

Quando jovem, fora muito vaidosa, tinha cabelos anelados, pele morena, lábios grossos e um traseiro que era o seu maior patrimônio. Deixara a casa dos pais aos quase dezoito anos para se casar com Antônio e vir morar na cidade grande. Profissão não tinha; estudos muito pouco, não fora além da sexta série ginasial e o marido, um lindo rapagão metalúrgico, não levou muito para encher-se da vida de casado e dos filhos e cair de vez na gandaia.

Moravam em Veneza. Não a bela e majestosa Veneza italiana, com seus canais, gôndolas e seu casario fascinante; palco de luas-de-mel e encontros de amantes nos muitos filmes que assistira com a mãe quando ainda morava no interior. Sua Veneza era na periferia da capital, próximo ao CEASA e banhado por um esgoto a céu aberto que sempre transbordava e levava alguns barracos a cada inundação de verão. Viera parar ali pelos idos de 1982 e de lá para cá, a convivência com enchentes virara rotina.

Enquanto fazia um café ralo e terminava o arroz, os pensamentos iam longe. As filhas, agora mocinhas, não davam tanto trabalho quanto, ainda pequenas, era obrigada a deixá-las muitas vezes sozinhas no barraco, sob o olhar de alguma vizinha enquanto ganhava a vida como diarista. A preocupação de agora era outra. Raquel e Soraia, suas filhas, estavam ainda na adolescência. A mais velha dezesseis anos e Soraia ia completar quatorze na semana seguinte. Como a mãe, não tinham cabeça para muito estudo e vivam fascinadas pelas novelas e programas de auditório da televisão. Sabiam tudo sobre a vida dos artistas: quem estava ou largou quem, quem deu vexame em festas, quem bebia, fumava, se drogava ou era a capa da revista. Tinham, pregados na parede do minúsculo quarto, dois pôsteres gigantes dos ídolos do momento. Sabiam todos os passos de dança das músicas “da hora”  e passavam  horas cantando e ensaiando no barraco de três cômodos a coreografia para os bailes funk nos sábados.

Santuza terminou seus afazeres, montou sua marmita, deu uma olhada no quarto onde dormiam as filhas, benzeu-se, apagou a vela e foi num passo acelerado para o ponto final do ônibus, a única forma de fazer o longo trajeto sentada até o centro da capital. Com sorte, a viagem não passava de cinquenta a sessenta minutos, tempo em que ela vinha dormindo, boca aberta, cabeça pendida na janela, bolsa atracada nos dois braços pra evitar ladrões.

Desde os anos noventa, vivia mais sossegada. Sem marido, fora a luta, inicialmente como faxineira e com a ajuda de uma das patroas conseguira emprego numa prestadora de serviço e virou empregada de carteira assinada, jornada quarenta e quatro horas semanais. Trabalho duro no palácio de justiça, salário se não muito pelo menos dava para ir vivendo, pagar contas e até comprar usados, rádio, geladeira, duas camas e televisão. Seu sonho agora era puxar mais um cômodo para os fundos e ter uma sala de TV e um sofá. Entrava sem dar bom dia e subia rápido pelas escadas até o sexto andar, para não dar trela ao porteiro abusado e ser alvo de mexericos e fofocas. Conversava pouco, trabalhava muito. Era incumbida de limpar dois andares repletos de salas, banheiros e copas onde um batalhão de gente trabalhava.

Pegava serviço às seis horas e só parava ao meio dia para o almoço com o estômago colado às costas. Ás vezes um funcionário ou outro lhe cedia um pedaço de pão, biscoitos e até café e algumas frutas.

Neste dia enquanto esfregava as paredes, limpava portas e divisórias, a cabeça de Santuza estava inquieta. As filhas de uma hora para outra largaram o ginásio, encorparam rápido e andavam com umas companhias que nem precisava de bola de cristal para ver onde tudo ia descambar. Suspeitava que Raquel fizera um aborto clandestino no final de semana em que avisou que ia passar uns dias no sítio de uns amigos.

A irmã também estava mudada, antes tímida e comportada, passou a andar com uma turma da “pesada”, o grupo do Zé Pretinho, rapaz violento, conhecido pela sua ligação com o tráfico de drogas. Santuza mal percebera o momento em que as filhas deixaram de ser crianças para se tornarem mulheres, mas o que mais lhe preocupa e muito, era o deslumbramento das duas com as novas amizades. Agora, sempre tinha coisa nova em casa, presentes que ela não sabia de onde vinham, mas seu coração de mãe suspeitava. Começou com pequenos mimos. Uns brincos, pulseiras, relógios que vieram seguidos por jeans de marca, tênis importados caríssimos.

Sentia um aperto no peito, pedia explicações que não satisfaziam o apelo de mãe. Via suas filhas se perderem a cada dia e não via jeito de interromper o processo. Não tinha as boas armas para o combate, que para ela seriam um homem de pulso em casa, a religião, os cuidados de mãe que não podia dar por estar horas seguidas fora de casa dando duro para sustentar a família.

Santuza saia do trabalho às cinco horas da tarde e chegava lá pelas seis e meia, sete horas, dependo muito da hora que o ônibus passava e as condições do trânsito. A volta era sempre tortuosa e humilhante. Do trabalho ao ponto do ônibus na praça da estação, Santuza andava uns bons vinte minutos, entre ruas repletas de gente, carros e ambulantes. A fila para entrar no ônibus dava volta no quarteirão e além de aguardar em pé tinha que se sujeitar aos “apertos e encontrões” na hora de entrar no ônibus, passar pela roleta e em todo o trajeto na ida e vinda para o trabalho. A volta era sempre em pé, dependurada tal qual aqueles salames em vendinhas do interior. Se viesse em pé a passada de mão era certa!

Hoje estava cm o coração apertado, pressentia algo ruim, não sabia o que. Tinha pedido a ajuda da mãe com a mais nova e esta a havia carregado para o interior por uns bons três meses. No entanto soubera pelos vizinhos que o tal Zé Pretinho não gostara e prometera uma lição para ninguém jamais esquecer. Havia uma semana que Soraia voltara e o tal ainda não dera as caras.

Santuza não conseguia tranqüilizar seu coração, mas esperava que o tal limitasse a brigar com a filha, tomar-lhe os presente e até bater-lhe. No entanto hoje, sentiu uma aflição ao ver a menina dormindo, uma dor no peito que não soube explicar e que se manteve durante todo o dia de trabalho. Estava ansiosa para chegar em casa, ver as meninas, arrumar as coisas e preparar o jantar. E depois descansar para mais um dia.

Já na rua de casa um burburinho de gente e o barulho da sirene da polícia colocou todos os seus sentidos em alerta. Começou a andar apressada e a rezar freneticamente, pedindo a Deus que não fosse em sua casa. Não com as suas meninas. Quando viu a comadre Colodina vindo aflita em sua direção, estacou lívida, não ouvia mais nada, não sentia mais nada a não ser aquela terrível opressão no peito e na cabeça. As pernas bambearam, a cabeça ficou rodando, sentia fortes zumbidos nos ouvidos, pensou estar flutuando.

 Zé Pretinho cumpria o prometido. Entrou na casa com seu bando, arrastou a menina para fora, encharcou-lhe as roupas, todo o corpo de gasolina, álcool, querosene e ateou fogo nela!

Ninguém se atreveu a socorrê-la. O bando gargalhava, gritava, urrava, enquanto a pobre menina se desfazia nas chamas, num ritual hediondo, satânico, macabro. A polícia chegou tarde. Não havia mais socorro! Soraia estava morta, totalmente desfigurada!

Um pacto de silêncio, terror, medo, encobriu os autores daquela crueldade. Lá embaixo, ao pé do morro, Santuza quedou-se de joelhos com um olhar estranho, de alguém que já não mais fazia parte da realidade.

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