BOLA
DE CRISTAL
Marina da Silva
A noite ainda ia alta
quando o relógio despertou aos pés da cama de Santuza, roubando-lhe as poucas
horas de prazer de um sono pesado. Deitara tarde na noite anterior. Tinha
comida por fazer, muita roupa pra passar
e por fim foi apenas sacudindo, dobrando e enchendo a cômoda que de tão
velha e cheia, estufara nos lados, mal encaixando as quatro gavetas. Embora
jovem, ainda não completara trinta e cinco anos, Santuza sentia-se e via-se
como uma velha. Pulou da cama que dividia com uma das duas filhas, entrou no
banheiro pra esvaziar a bexiga e saiu de lá pronta, num jeans e camiseta
surrados, cabelos puxados para trás e preso num desgrenhado rabo de cavalo.
Quando jovem, fora muito
vaidosa, tinha cabelos anelados, pele morena, lábios grossos e um traseiro que
era o seu maior patrimônio. Deixara a casa dos pais aos quase dezoito anos para
se casar com Antônio e vir morar na cidade grande. Profissão não tinha; estudos
muito pouco, não fora além da sexta série ginasial e o marido, um lindo rapagão
metalúrgico, não levou muito para encher-se da vida de casado e dos filhos e
cair de vez na gandaia.
Moravam em Veneza. Não a
bela e majestosa Veneza italiana, com seus canais, gôndolas e seu casario
fascinante; palco de luas-de-mel e encontros de amantes nos muitos filmes que assistira
com a mãe quando ainda morava no interior. Sua Veneza era na periferia da
capital, próximo ao CEASA e banhado por um esgoto a céu aberto que sempre
transbordava e levava alguns barracos a cada inundação de verão. Viera parar ali
pelos idos de 1982 e de lá para cá, a convivência com enchentes virara rotina.
Enquanto fazia um café
ralo e terminava o arroz, os pensamentos iam longe. As filhas, agora mocinhas,
não davam tanto trabalho quanto, ainda pequenas, era obrigada a deixá-las
muitas vezes sozinhas no barraco, sob o olhar de alguma vizinha enquanto
ganhava a vida como diarista. A preocupação de agora era outra. Raquel e
Soraia, suas filhas, estavam ainda na adolescência. A mais velha dezesseis anos
e Soraia ia completar quatorze na semana seguinte. Como a mãe, não tinham
cabeça para muito estudo e vivam fascinadas pelas novelas e programas de
auditório da televisão. Sabiam tudo sobre a vida dos artistas: quem estava ou
largou quem, quem deu vexame em festas, quem bebia, fumava, se drogava ou era a
capa da revista. Tinham, pregados na parede do minúsculo quarto, dois pôsteres
gigantes dos ídolos do momento. Sabiam todos os passos de dança das músicas “da
hora” e passavam horas cantando e ensaiando no barraco de três
cômodos a coreografia para os bailes funk nos sábados.
Santuza terminou seus
afazeres, montou sua marmita, deu uma olhada no quarto onde dormiam as filhas,
benzeu-se, apagou a vela e foi num passo acelerado para o ponto final do
ônibus, a única forma de fazer o longo trajeto sentada até o centro da capital.
Com sorte, a viagem não passava de cinquenta a sessenta minutos, tempo em que
ela vinha dormindo, boca aberta, cabeça pendida na janela, bolsa atracada nos
dois braços pra evitar ladrões.
Desde os anos noventa,
vivia mais sossegada. Sem marido, fora a luta, inicialmente como faxineira e
com a ajuda de uma das patroas conseguira emprego numa prestadora de serviço e
virou empregada de carteira assinada, jornada quarenta e quatro horas semanais.
Trabalho duro no palácio de justiça, salário se não muito pelo menos dava para
ir vivendo, pagar contas e até comprar usados, rádio, geladeira, duas camas e
televisão. Seu sonho agora era puxar mais um cômodo para os fundos e ter uma
sala de TV e um sofá. Entrava sem dar bom dia e
subia rápido pelas escadas até o sexto andar, para não dar trela ao porteiro
abusado e ser alvo de mexericos e fofocas. Conversava pouco, trabalhava muito.
Era incumbida de limpar dois andares repletos de salas, banheiros e copas onde
um batalhão de gente trabalhava.
Pegava serviço às seis
horas e só parava ao meio dia para o almoço com o estômago colado às costas. Ás
vezes um funcionário ou outro lhe cedia um pedaço de pão, biscoitos e até café
e algumas frutas.
Neste dia enquanto
esfregava as paredes, limpava portas e divisórias, a cabeça de Santuza estava
inquieta. As filhas de uma hora para outra largaram o ginásio, encorparam
rápido e andavam com umas companhias que nem precisava de bola de cristal para
ver onde tudo ia descambar. Suspeitava que Raquel fizera um aborto clandestino
no final de semana em que avisou que ia passar uns dias no sítio de uns amigos.
A irmã também estava
mudada, antes tímida e comportada, passou a andar com uma turma da “pesada”, o
grupo do Zé Pretinho, rapaz violento, conhecido pela sua ligação com o tráfico
de drogas. Santuza mal percebera o momento em que as filhas deixaram de ser
crianças para se tornarem mulheres, mas o que mais lhe preocupa e muito, era o
deslumbramento das duas com as novas amizades. Agora, sempre tinha coisa nova
em casa, presentes que ela não sabia de onde vinham, mas seu coração de mãe
suspeitava. Começou com pequenos mimos. Uns brincos, pulseiras, relógios que
vieram seguidos por jeans de marca, tênis importados caríssimos.
Sentia um aperto no peito,
pedia explicações que não satisfaziam o apelo de mãe. Via suas filhas se
perderem a cada dia e não via jeito de interromper o processo. Não tinha as
boas armas para o combate, que para ela seriam um homem de pulso em casa, a
religião, os cuidados de mãe que não podia dar por estar horas seguidas fora de
casa dando duro para sustentar a família.
Santuza saia do trabalho
às cinco horas da tarde e chegava lá pelas seis e meia, sete horas, dependo
muito da hora que o ônibus passava e as condições do trânsito. A volta era
sempre tortuosa e humilhante. Do trabalho ao ponto do ônibus na praça da
estação, Santuza andava uns bons vinte minutos, entre ruas repletas de gente,
carros e ambulantes. A fila para entrar no ônibus dava volta no quarteirão e
além de aguardar em pé tinha que se sujeitar aos “apertos e encontrões” na hora
de entrar no ônibus, passar pela roleta e em todo o trajeto na ida e vinda para
o trabalho. A volta era sempre em pé, dependurada tal qual aqueles salames em
vendinhas do interior. Se viesse em pé a passada de mão era certa!
Hoje estava cm o coração
apertado, pressentia algo ruim, não sabia o que. Tinha pedido a ajuda da mãe
com a mais nova e esta a havia carregado para o interior por uns bons três meses.
No entanto soubera pelos vizinhos que o tal Zé Pretinho não gostara e prometera
uma lição para ninguém jamais esquecer. Havia uma semana que Soraia voltara e o
tal ainda não dera as caras.
Santuza não conseguia
tranqüilizar seu coração, mas esperava que o tal limitasse a brigar com a
filha, tomar-lhe os presente e até bater-lhe. No entanto hoje, sentiu uma
aflição ao ver a menina dormindo, uma dor no peito que não soube explicar e que
se manteve durante todo o dia de trabalho. Estava ansiosa para chegar em casa,
ver as meninas, arrumar as coisas e preparar o jantar. E depois descansar para
mais um dia.
Já na rua de casa um
burburinho de gente e o barulho da sirene da polícia colocou todos os seus
sentidos em alerta. Começou a andar apressada e a rezar freneticamente, pedindo
a Deus que não fosse em sua casa. Não com as suas meninas. Quando viu a comadre
Colodina vindo aflita em sua direção, estacou lívida, não ouvia mais nada, não
sentia mais nada a não ser aquela terrível opressão no peito e na cabeça. As
pernas bambearam, a cabeça ficou rodando, sentia fortes zumbidos nos ouvidos,
pensou estar flutuando.
Zé Pretinho cumpria o prometido. Entrou na
casa com seu bando, arrastou a menina para fora, encharcou-lhe as roupas, todo
o corpo de gasolina, álcool, querosene e ateou fogo nela!
Ninguém se atreveu a
socorrê-la. O bando gargalhava, gritava, urrava, enquanto a pobre menina se
desfazia nas chamas, num ritual hediondo, satânico, macabro. A polícia chegou
tarde. Não havia mais socorro! Soraia estava morta, totalmente desfigurada!
Um pacto de silêncio,
terror, medo, encobriu os autores daquela crueldade. Lá embaixo, ao pé do
morro, Santuza quedou-se de joelhos com um olhar estranho, de alguém que já não
mais fazia parte da realidade.
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