DÉCIMO
TERCEIRO ANDAR
Foto Marina da Silva. Avenida Paulista, São Paulo,SP. Brazil.
Marina da Silva
Seis horas. Leléu chegou ao trabalho. Olhou
o porteiro de soslaio, chamou o elevador para ir ao décimo terceiro andar.
Vinte e seis anos, mesmo ritual, agora penoso, irritava-o.
Fingiu ler algo. Quando a porta abriu
esgueirou-se no fundo, pálido, estranho, a pasta colada ao corpo; apertou
nervoso o botão para fechar rápido. Sentiu que não mais respirava, o coração
não batia, apenas doía-lhe muito.
Dezessete anos atrás era a vida de
Leléu outra. Entrara porteiro na Justiça, carteira assinada, dedicação total.
Conseguiu tornar-se funcionário concursado. Trabalhava numa vara com processos,
conversando com juízes e advogados e colegas de serviço de formação superior.
Nos tempos de porteiro Leléu andava
empertigado, terno verde-musgo, rádio na mão para as patrulhas, sempre cordial,
solícito. Tinha vinte e cinco anos, trabalhava e fazia Direito à noite. Morava
com a mãe, dois cães numa kitnet alugada no centro da cidade. Nos anos noventa,
Leléu virou assistente judiciário e empossado numa vara aprendeu o trabalho,
sentindo prazer em tudo e sempre citado como modelo! Pontual, assíduo, dedicado, atendia com
presteza, oferecia ajuda e tinha paciência com novatos, algo raro no serviço
público. Neste tempo ganhou uma
gratificação superior ao próprio salário e economizando disciplinadamente,
comprou uma casa e financiou outro imóvel pensando num futuro casado, pai de
família.
Nesse período a saúde da mãe passou a
lhe dar cuidados. Bem instalada, ela ia a médicos sem necessidade, inventando
doenças nunca comprovadas. Tornou-se autoritária, ciumenta, exigente. Leléu abriu mão de tudo; vivia aprisionado
entre a mãe e o trabalho que se transformava radicalmente. Informatização e
reformas do governo, todas prejudiciais aos trabalhadores e despotismo de
chefias com o discurso “flexibilidade”, trabalho de equipe, enrijeceram as
relações e condições de trabalho. Missão, metas, gestão estratégica, qualidade
total, gestão de competências e de pessoas (mas perpetuando o nepotismo);
chavões apropriados da administração empresarial e aplicado na Instituição criada para dirimir
conflitos do trabalho. Isso gerou instabilidade, surto de aposentadorias,
desfalcando o “Team” nas varas. Leléu
penou com sobrecarga de trabalho, metas absurdas e redução do salário. Muitos
como ele perderam a gratificação, ficaram endividados, adoeceram,
principalmente por alcoolismo, depressão, problemas osteomusculares.
A pressão por resultados e a imposição
de metas virou ordem do dia em pilhas
de processos acumulados e mutirões. Muitos sentiram a compressão, poucos
ousaram expressá-la, milhares se entristeceram, um grande número adoeceu e
Leléu, medalhista, funcionário-padrão, esmoreceu. Morria sofrendo em silêncio e
agonia a renda rebaixada, a gratificação usada para exploração e assédio moral.
O silêncio de Leléu juntou-se ao
silêncio geral, morreram os sorrisos, o bom dia e gestos educados. Uma peste
contaminava, envenenava e emudecia em prol das metas para as vistas do Conselho Nacional de Justiça. Bate papo e cafezinho
condensaram-se em uns três “hum, hã, ah”; somente o cigarro e o banheiro não
podiam ser controlados.
Leléu não percebeu quando a bebida de
hábito virou vício. Apenas sentiu que precisava beber todos os dias e bebia no
escuro de uma cantina italiana fumando o pensamento embotado. Aos quarenta e
dois anos sentia-se acabado. Não comia, não dormia direito. Passava noites a
fio trabalhando, fumando, bebendo, terrificado com metas. Nunca mais recebeu
elogio, placa, presente de servidor-padrão; agora era um reles colaborador.
Passou a andar desleixado. Doíam-lhe os dentes, os maxilares, as gengivas
sangravam um hálito podre. A empregada
notou-lhe costumes esquisitos: muitos celulares, a mania de escrever e ler
cartas escondido.
Um dia sem porque Leléu entrou no banheiro
e ligou para o celular que deixava na mesa ao lado do retrato da mãe. “Seo Leogildo! Leléu atravessou a sala e
foi atender num canto atrás dos arquivos. Ninguém prestou atenção a esse ato
até virar rotina. Mas várias vezes o surpreenderam excitado, olhos vidrados, lábios
umedecidos. “Deve ser mulher!”As conversas breves deixavam Leléu transfigurado,
a produtividade alta. A montanha de processos despencava, sendo devastada na
inútil ilusão de ver um trabalho infindável terminado.
As quartas Leléu despachava uma carta.
Aos sábados esperava ansioso a resposta. Apossava descontrolado das
correspondências trancando-se no quarto, sentido as carnes trêmulas. Três anos
e ninguém ousava perturbá-lo. Pegava sôfrego a carta, abria-a, os olhos
brilhantes, bêbados, sorrindo estranho, apertava-a no peito e depois lia
emocionado.
Na segunda-feira foi trabalhar arrumado,
barbeado, usando suas melhores roupas. Parecia decidido, encontro marcado.
Tirou a carta, aproximou-se da janela e...
Leléu
Gostaria de encontrar-te feliz, enamorado. Mas
sei que é em vão. A vida que tu levas é pouco humana. Aliás, não é vida e nada humana!
Este silêncio que te cala o peito e anuvia teu ser é um fardo pesado. Precisas
arranjar uma saída e escapar! Viver é correr o risco da vida! Quanta vida tu
desperdiças na cachaça quando podias abocanhá-la nas boas coisas da vida!
Lembras-te do teatro, viagens ao exterior, dos vinhos e livros? Lembras-te que
um dia sonhastes ser pai? Como se chamava aquela que seria tua esposa? Júlia,
Luana, Marina?
Ah!
Quanta energia preciosa e vida consomes nesta papelada inútil, aborrecida, sem
fim. Acorde! Não deixes tua vida te escapar! Reaja, grite, quebre tua mesa,
ateie fogo nestes processos inúteis que empobrece-te o espírito, faz teus dias
infelizes! Onde tu ficastes? Para onde foi teu orgulho de servidor público?
Quando foi que envenenaram e transformaram de agradável e gratificante em um
inferno dantesco o teu trabalho? Tudo mudou amigo, é hora de mudares também!
Você já é a “barata” Kafka! Fujas! Ah se eu fosse tu! Ah se tu fosses igual a
mim! Colocavas um fim em tudo com um tiro ou atiravas-te daí agora num vôo
tranqüilo!
Marina da Silva
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